segunda-feira, 30 de junho de 2014

Saltar sobre a sombra

Lothar Reichel - Jumping the puddle (circa 1970)

À nossa própria sombra, ensina-nos a experiência, podemos empurrá-la, arrastá-la, caminhar a seu lado. O que é pedido aos homens, contudo, é mais do que isso. Pede-se-lhes que saltem sobre ela, que quebrem o elo que os liga a ela, e que se libertem da acção gravítica que, sobre eles, a sombra exerce. Libertar-se não é outra senão saltar sobre a sua própria sombra.

domingo, 29 de junho de 2014

Enfrentar-se a si mesmo

Leonard Freed - Naples, Italy (1958)

Enfrentar-se a si mesmo numa rua vazia, eis o maior desafio colocado ao homem. Quantas vezes o homem pensa que o seu adversário ou o seu inimigo residem no outro? Essa é a solução mais óbvia e, ao mesmo tempo, a mais equívoca e deslocada da realidade. O outro que surge nesse lugar adversarial não passa de uma projecção de si mesmo. O outro é o eu que se recusa a reconhecer-se na sua natureza. Qualquer conflito é ainda um conflito consigo mesmo, um conflito no vazio de si mesmo.

sábado, 28 de junho de 2014

O caminho do meio


Erguer-se, tornar-se flexível perante os elementos, resistir quando tudo se desfaz. Enraizar-se na terra funda e crescer para os céus. Assim é o homem, o que está sempre a meio caminho, voz da mediação, o terceiro que liga o que está em baixo ao que está em cima. O que está a meio caminho é também aquele que toma o caminho do meio.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Haikai do Viandante (194)

Ho Fan - Approaching shadow (1954)

a súbita sombra
semeia trevas na parede
noite que te assombra

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Fechar as janelas

Harry Callahan - Chicago (1949)

Nem sempre fechar as janelas significa cortar os vínculos com o mundo. Pode ser apenas um momento de repouso ou de afinação do olhar, um compasso de espera para que o viandante se encontre com o caminho que o espera.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Poemas do Viandante (461)


461. este rasto luminoso

este rasto luminoso
trazido nas ondas

este vestígio de cal
aberto ao sol

esta promessa de areia
no mar furioso

tudo páginas perdidas
em terras de sal

terça-feira, 24 de junho de 2014

Os lugares desertos

Mark Rothkovich - Untitled (1961)

Entretanto, o menino crescia, o seu espírito robustecia-se, e vivia em lugares desertos, até ao dia da sua apresentação a Israel. (Lucas 1:80)

Aprendemos que o deserto é esse lugar onde o espírito se robustece e aquilo que é pequeno cresce. O deserto não é um lugar de fuga, mas de preparação, como se o preparar-se exigisse sempre o esforço da solidão e o confronto consigo mesmo antes de entrar no espaço partilhado com os outros. Tornar-se forte para dominar? Não, tornar-se forte para poder viver entre os fracos e os dominadores, sem temer ser uns nem desejar ser outros.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

O álibi perfeito

Sarah Moon - L’ombre du loup (1983)

Os medos que trazemos em nós projectamo-los no mundo, para que depois eles nos assaltem na primeira ocasião. Esse é o álibi perfeito. Somos vítimas do mundo. Mas esse mundo caótico, errante, confuso, esse mundo onde o homem é o lobo do homem não é outro se não o mundo que inventamos dentro de nós para fugirmos ao caminho que nos espera.

domingo, 22 de junho de 2014

Sem bagagem

Irving Penn - Vogue Luggage, New York (1948)

Não, a viagem do viandante não exige que ele venha carregado. Na verdade, ele chega ao caminho despido de tudo. Sem nada, faz-se à estrada. Quando começa a acumular objectos a transportar, começa a errância e o destino que o espera oculta-se-lhe. O caminho do viandante é a lenta aprendizagem da inutilidade de toda e qualquer bagagem. Tudo o que precisa está dentro de si. O resto ser-lhe-á propiciado. Na fronteira, só uma coisa a declarar: sem bagagem.

sábado, 21 de junho de 2014

Um ponto de passagem

Hengki Koentjoro - Netting (2014)

Cada um tem o seu próprio caminho. Mas todo o caminho tem as suas encruzilhadas, esses pontos onde os homens, por um instante, se encontram e fazem comunidade, para, depois de usarem a palavra, continuar na solidão que cabe a cada um deles. Não, a comunidade não é o destino do homem, não é o seu fim, nem, tão pouco, o lugar onde os homens se devem exibir. Ela é um ponto de passagem para quem veio de longe e vai para longe.