terça-feira, 10 de junho de 2014

Dos abismos

Mark Tansey - Derrida queries de Man (1990)

Os abismos do pensamento não são abismos. Em última análise, estão protegidos seja pela rede da retórica, seja pela mão da lógica. Por mais interessante que seja um pensamento abissal, ele não deixa de ser um mero pensamento, algo que se retira do abismo que é a vida e ganha autonomia numa razão e no registo gráfico de que se reveste. Só a vida - com o trágico que contém - está perto do abismo. O mais pequeno equívoco e tudo se precipita nesse sem fundo e sem nome a que chamamos morte.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

À espera de ventos propícios

Edvard Munch - Sailboats in the Harbor (1905)

Quantas vezes ficamos longo tempo parados no caminho? Quantas vezes tudo parece sem sentido e sem uma abertura para a viagem? E no entanto o tempo flui, corre e precipita-se, como se alguma coisa o esperasse. Nessas alturas, em que parece especado e sem destino, o homem é apenas como um veleiro ancorado no porto. Espera que os ventos propícios retornem e o levem onde quiserem.

domingo, 8 de junho de 2014

Se a tempestade se aproxima

Léonard Misonne - A Storm Arrives

Há violentas tempestades que, vindas da revolução dos elementos, se abatem sobre o Viandante. Essas, porém, são tempestades benignas. Terríveis são as que nascem no coração do homem. Partem do centro vital, espalham-se por cada recanto do ser, abalando todos os interstícios. Quando se aproximam, o melhor é o Viandante esperá-las em silêncio. Deixar que esse silêncio revele o terrível que se aproxima, para que a verdade então se manifeste.

sábado, 7 de junho de 2014

Poemas do Viandante (459)

László Moholy-Nagy - Nude (entre 1928-1937)

459. corpo perdido no sono

corpo perdido no sono
corpo ao abandono

suave vestígio de sombra
água que me assombra

vida trazida p'lo vento
luz fogo tormento

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Abrir a cozinha

Al Capone’s free soup kitchen, Chicago (1931)

Ali, onde a fome reina, não há lugar para escolher o senhor de quem se é súbdito. A necessidade traz com ela a vassalagem. O que abrir a cozinha terá a multidão à porta. O seu gesto será acolhido como um dom da Graça. São ínvios os caminhos pelos quais o homem faz a sua viagem.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Haikai do Viandante (191)

Juan Rulfo - Nicho de Atlihuetzía

vestígio de vida
irrompe pela a memória
a casa perdida

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Aprender a matizar

Man Ray - Noire et Blanche (1926)

O primeiro dever do viandante é aprender a matizar, deixar de ver  o mundo a preto e branco, exercer a virtude da gradação. Houve homens que julgaram descobrir a santidade na mais dura austeridade, verdadeiros atletas do espírito. A vida espiritual, porém, não é uma maratona, e o extremo rigor é sintoma não de espiritualidade mas de patologia. Pegamos no branco e no preto e depois criamos um mundo de sombras. Noutras alturas, há que tomar apenas o branco e decompô-lo nas múltiplas cores que fazem a vida. A viagem é uma aprendizagem da gradação da luz.

terça-feira, 3 de junho de 2014

O inimigo interno

Grete Stern - Consentimiento (Sueños) (1949)

Não são as ilusões ou o mal que caem sobre nós e, contra a nossa vontade, nos tomam de assalto e subjugam. Somos nós que consentimos e nos entregamos. O inimigo externo tem sempre poderosos aliados dentro de muralhas.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Signo sinal 3. A sombra de uma sombra

Hans Baumgartner - Vor dem Arbeitsamt, Zürich (1935)

Mais que um rasto deixado pela ocultação da luz, a sombra é um sinal, um símbolo. Sinaliza o homem e simboliza a sua condição. Não será, desse modo, a sombra de uma sombra? Na sombra revela-se não apenas aquilo que há de sombrio no homem, mas a sua natureza intermédia, a de não ser nem pura luz nem pura treva. Uma sombra deixado como rasto. Por quem?

domingo, 1 de junho de 2014

Seguir em frente

Leo Matiz - Polígono

Adentrar-se mais e mais no mistério, percorrer a longa galeria onde luz e trevas se sucedem sem fim, seguir em frente sem olhar para trás. Orfeu não suportou a exigência que a vida lhe pôs e perdeu Eurídice. Quem busca uma certificação ganha a certeza da perda. Resta, ao homem, apenas seguir em frente, saber que a luz ofusca e que as trevas são a noite escura da purgação dos equívocos e das ilusões. O resto é o mistério indecifrável.