sábado, 10 de maio de 2014

Nada a declarar

William Henry Fox Talbot - The Old Gamekeeper (1844)

O mais importante da viagem começa quando se descobre que não existe caça a guardar. Nesse momento, abre-se mão do mundo e das coisas. O viandante não é caçador nem proprietário. Vive daquilo que lhe é trazido dia após dia e recebe cada coisa com um cântico de acção de graças. Nada lhe pertence, nada quer. Passa esta e aquela fronteira, e diz sempre as mesmas palavras: nada a declarar.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Aridez e abandono

Ernst Haas - White Sands, New Mexico (1952)

Há momentos na vida dos homens em que tudo parece um deserto. A aridez toma conta da existência e um desmedido sentimento de abandono apossa-se da pessoa. A tentação é de sucumbir e entregar-se à lamentação por tão bizarro destino. Mas saberá o viandante qual a sua verdadeira situação? Não será nessas horas de abandono e aridez que mais perto se encontra da plenitude da vida?

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Sobre a sombra

Rodney Smith - Gary Descending Stairs (1995)

A sombra não é meramente uma metáfora conveniente para dar profundidade ao livre jogo da poesia. Ela é um verdadeiro símbolo. E como todos os símbolos, a sombra simboliza múltiplas, e por vezes contraditórias, realidades. Sombra é o lugar do homem, ele que não suporta nem as trevas nem a luz mais pura. Mas o próprio homem não é mais do que sombra, uma presença evanescente sobre a terra, uma presença que, para ter consistência e não se reduzir a uma mera ilusão, necessita da Luz que o arranca à escuridão.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Haikai do Viandante (187)

Manuel Baeza - Borboletas (1979-80)

borboletas voam
e no sol vazio da tarde
os sinos ecoam

terça-feira, 6 de maio de 2014

Cultivar a boa consciência

Robert Doisneau - Hell (1952)

Os outros, segundo a palavra de Sartre, por nos frustrarem a realização do desejo, são o inferno. Ateiam o desejo e pela negação com que o acolhem mantêm viva a dinâmica desejante, sem possibilidade desta se apaziguar no acto da consumação. Mas será que eu sou assim tão inocente no meu desejo? Será que cada um, ao desejar, é vítima duma conspiração vinda de fora? Ora negar a inocência do desejo será atribuir-lhe, na origem, uma decisão, o que contraria a ideia - ideia fundada em sólido senso comum - de que somos irresponsáveis pelo que desejamos. E traria ainda uma outra e não desejada implicação: o inferno não são os outros, somos nós, ou está em nós. O homem sempre gostou de cultivar a boa consciência.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

O guia do perplexo

André Kertész - Washington Square, New York, Winter (1954)

Jesus respondeu-lhes: «A obra de Deus é esta: crer naquele que Ele enviou». (João, 6:29)

Por contaminação do pensamento grego, somos conduzidos a reduzir a questão da crença ao domínio da teoria, à discussão sobre se uma determinada crença é verdadeira ou falsa, se há ou não justificação para essa crença, isto é, se há outra crença ou conjunto de crenças que a suportem. Esta forma de pensar é conduzida pelo desejo da evidência e pela busca de consolo que a certeza traz ao espírito. Ora os textos evangélicos, nomeadamente os trechos atribuídos, nessas narrativas, a Jesus Cristo, pouco têm a ver com a consolação da certeza. Mesmo quando é proposta a fé, como é o caso do texto citado de João, o sentido nunca é teórico nem visa afirmar uma certeza. Pelo contrário, o leitor fica perante um enigma, como se a fé fosse a porta para a perplexidade e o evangelho um guia do perplexo.

domingo, 4 de maio de 2014

Os limites da lei moral

Wolf Suschitzky - Street Cleaner, Westminster, London (1937)

Então os seus olhos abriram-se e reconheceram-no, mas Ele desapareceu da sua presença. (Lucas, 24:31)

Pensamos muitas vezes que o reconhecimento do outro é o cerne da nossa conduta na comunidade, seja esta qual for. Esse reconhecimento é o centro da moral social e da vida ética. O estranho episódio relatado por Lucas mostra-nos todavia os limites do reconhecimento e da vida moral. Os discípulos de Emaús reconheceram-no, mas nesse reconhecimento perderam-no, como se a lei moral fosse ainda um obstáculo ao que o Cristo vinha trazer aos homens.

sábado, 3 de maio de 2014

Poemas do Viandante (456)

Roger Fenton - Vista, Furness Abbey (1860)

456. sonhar na noite e gritar

sonhar na noite e gritar
dentro do passado

e esperar que uma mulher
venha delicada

com as mãos incendiadas
e a boca em fogo

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A silenciosa escuta

Edward Weston - Near Neshanic, New Jersey (1941)

Por isso, Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para o fazerem rei, retirou-se, de novo, sozinho, para o monte. (João, 6:15)

A solidão surge nesta passagem de João em contraponto não com a vida em comunidade mas com o exercício do poder. Aquilo que cabe a cada um de nós reger não é os outros homens mas a si mesmo. O poder é o lugar expressamente rejeitado por Cristo. Todos conhecemos a sua palavra: o meu reino não é deste mundo (João, 18:36). De onde é então o seu reino? Melhor do que uma resposta dada pelo hábito, será meditar o versículo em epígrafe. Ele dá-nos uma indicação essencial: ao rejeitar um reino, o reino humano de natureza política, ele indicou o caminho do outro, o caminho da solidão.  Trata-se de um estranho reino, cuja notícia apenas pode chegar pela silenciosa escuta na solidão, mesmo que essa solidão seja rodeada pela presença da comunidade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Haikai do Viandante (186)

Man Ray - Dora Maar (1936)

no rumor do céu
abre-se a luz cintilante:
logo cai o véu