quarta-feira, 30 de abril de 2014

Perder a Graça

August Sander - Unemployed man (1928)

Um dos maiores equívocos dos tempos modernos reside em olhar as pessoas sem trabalho como um problema essencialmente económico. Esse olhar perverso esconde que a nossa condição original é a de seres sem emprego e sem préstimo, seres que, pelo nascimento, foram abandonados no mundo. O facto de dar emprego a alguém significa, como o mostra a origem latina (implicāre), envolver. Envolver no mundo onde se manifesta a Graça da comunidade significa acolher segundo a ordem da Graça. Um desempregado não é um excedentário económico, mas alguém a quem a comunidade obliterou a Graça do acolhimento. Graça essa que a própria comunidade recebeu para por todos distribuir.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Depende da perspectiva

Rodney Smith - Skyline, New York (1992)

Sobre as coisas humanas não há verdade possível de partilhar entre o homens. Aquilo que cada um vê depende do lugar de onde olha e do sítio para que olha. Este perspectivismo não afecta apenas a verdade. Afecta também a viagem que cabe a cada um fazer. Nenhum peregrino faz a peregrinação feita por outro, nenhum viandante faz a viagem realizada por terceiros. Tudo depende daquilo que se é e da forma como se escuta a voz que o impele ao caminho. Também a viagem depende da perspectiva.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

A dor do refugiado

David Turnley - Elderly Bosnian Refugee Crying. Tuzla, Bosnia-Herzegovina (1995)

As lágrimas de um refugiado não são apenas o sintoma de uma situação crítica na ordem do mundo. A perda da pátria e o estar num território estranho, no qual não se tem direito de cidadania, são terríveis experiências do mundo. Mas a dor do refugiado é ao mesmo tempo símbolo e reminiscência. Símbolo de um outro exílio e reminiscência de uma pátria não terrestre que todos trazemos em nós. Por isso, a dor do refugiado não é apenas dor de quem perdeu a cidadania na cidade terrestre, é também a dor de quem descobriu que já era refugiado na sua própria pátria.

domingo, 27 de abril de 2014

A procura do sentido

Wolf Suschitzky - Sunday morning, Oldham (1946)

Escutar o silêncio da solidão ou a velha ária do abandono. Nessa música está todo o destino da humanidade. Atirado para o mundo, o homem vê os laços a desfazerem-se. E se atravessa a estrada não é para recompor o que está a perder, mas procurar um sentido - um novo sentido - para tamanha solidão e tão grande abandono. E tudo se joga nesse instante. A perdição ou a salvação dependem da descoberta ou não do Sentido. 

sábado, 26 de abril de 2014

Poemas do Viandante (455)

Paul Gauguin - O cavalo branco (1898)

455. Tenho um cavalo de seda

Tenho um cavalo de seda
À minha espera

Nele entro na terra fria
Nunca cavalgada

E no ritmo do galope
Descubro o silêncio

Descubro um velho cântico
Na boca calada

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Tornar-se vazio

Charles Clifford - Carrera de San Jerónimo, Madrid (1853)

O essencial não é ser isto ou ser aquilo, mas tornar-se vazio, desocupar em si o espaço ocupado pelo desejo e pela ilusão, e esperar que, nesse mesmo instante, o vazio seja preenchido pela Vida exuberante, pela Realidade que, estando para além do domínio da aparência, só nesse vazio de si se manifesta.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Haikai do Viandante (185)

Wolf Suschitzky - Embankment, London (1947)

água e penumbra
um rio de pedra e luz
repousa na sombra

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O alfa e o ómega

Édouard Boubat - Paris, France (1962)

Os termos alemães Urmensch e Übermensch poderão ajudar-nos a compreender um dos elementos estruturais da nossa cultura. No entanto, não devemos traduzir Urmensch por homem primitivo ou pré-histórico, nem Übermensch por super-homem. Urmensch pode ser visto como o homem primordial, aquele que é o paradigma de toda humanidade e que está presente no fundo de cada ser humano. Por seu turno, o Übermensch ainda é o homem, mas, ao mesmo tempo, é mais que humano. Não há uma diferença entre o Urmensch e o Übermensch, embora para cada homem em particular, cada ser humano empírico, eles constituam dois pontos diferentes da viagem. Um, o homem primordial, é o ponto de partida, o outro o ponto de chegada. A tradição religiosa do Ocidente, o cristianismo, está toda ela aqui. Um é o alfa e outro é o ómega. Nessa tradição, o Cristo é, ao mesmo tempo o alfa e o ómega, o Urmensch e o Übermensch, o início e o fim do caminho.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Um grão de areia na duna

Brett Weston - Dune, Oceano (1934)

Recebemos uma estranha educação. Devido a ela, o homem convence-se que é livre quando, de ego inflacionado, impõe aos outros a sua vontade. Não estranha que liberdade e império possam conflituar. A liberdade, porém, nasce da ausência de ilusões sobre si mesmo, nasce quando o homem se descobre como um grão de areia perdido na imensidão da duna.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Da elevação e da queda

Brassaï - Les Escaliers de Montmartre, Paris (1930)

A escada surge, muitas vezes, como o símbolo de uma árdua subida ao que é mais elevado, mas é também um instrumento de descida. Melhor, a escada é uma forma de ocultar a própria queda. Descer tranquilamente é ainda uma forma de passar para um nível menos elevado, para um grau de compreensão da realidade menos luminoso, para um afastamento daquilo que é superior. Como todos os símbolos, a escada tem uma natureza ambígua. Mostra ao homem o esforço da elevação e esconde-lhe a tragédia da queda.