quinta-feira, 10 de abril de 2014

O nome que lhe deram

Ray K. Metzker - Valencia (1961)

O homem moderno, nestes dias sem rumo, está longe de ser um viandante. O seu movimento incessante denuncia-o como mero transeunte, alguém vai e vem sem saber que toda a viagem é, na verdade, uma peregrinação. Não para admirar as relíquias dos santos, mas para si mesmo. O viandante procura o significado do nome que lhe deram. Este não é um simples designação, mas um mistério e um projecto de descoberta e coincidência com a palavra que o chamou à vida.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Haikai do Viandante (183)

Hengki Koentjoro - Sakura (2014)

um rumor de branco
nas cerejeiras em flor
luz e sol e canto

terça-feira, 8 de abril de 2014

O desejo infinito

Joshua Benoliel - Bairro Grandella (Festas dos Santos Populares) - Estrada de Benfica - Lisboa (início do séc. XX)

Há sempre nas festividades humanas, por faustosas que sejam, um rasto de desilusão, como se o prazer e a alegria esperados fossem outros e não aqueles que estão prometidos e são proporcionados. A incomensurabilidade entre o desejo humano e as suas possibilidades de realização é, na verdade, infinita, pois se a festa, aquilo que é o fruto mais raro da vida material, é finita, o nosso desejo é infinito e só no infinito pode ser saciado.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A promessa e o desejo

Brett Weston - Classic Nude (1975)

Um dos elementos da dinâmica do desejo reside na apresentação do objecto de desejo como promessa. A promessa faz a mediação entre a indiferença do desejado e o compromisso que toda a entrega representa. A promessa é um sim que ainda é não, mas um não que entra num processo de transmutação semântica que culminará na sua metamorfose em sim. Prometer é intensificar o desejo daquele que deseja, levá-lo ao paroxismo. Mas a promessa só funciona desse modo se houver desejo daquilo que se constitui em objecto de desejo. Na ausência de desejo, qualquer promessa se torna risível. 

domingo, 6 de abril de 2014

Entre duas cegueiras

Alfred Eisenstaedt - Woman under streetlight in Montmartre at night. Paris, France (1963)

A luz, por rigorosas e claras que sejam as explicações científicas, nunca deixará, para os homens, de ser um mistério. Não podemos olhá-la fixamente, pois cega-nos, mas sem ela seremos também cegos. Esta ambivalência da luz traz uma certa ordem, a ordem que diz respeito aos homens na terra. Devemo-nos deixar  envolver por ela, devemos olhar o seu efeito sobre o mundo e os seus objectos. Devemo-nos deixar guiar pelo seu resplendor, mas mais do que isso não nos cabe a nós, pobres mortais perdidos entre duas cegueiras.

sábado, 5 de abril de 2014

A vertigem

Berenice Abbott - Broadway and Rector from Above, New York (1935)

A vertigem é uma confissão do corpo. Ele elevou-se mas a terra ainda o atrai, e fá-lo de tal forma que gera, no sujeito, o desejo de nela se estatelar e, assim, se fundir no húmus da terra. A vertigem é a confissão de uma alma telúrica que, deslocada do seu ambiente, a ele deseja retornar. Quem quiser, porém, fazer a viagem tem de aprender a caminhar no alto e a conviver com as solicitações terrestres que convocam a cada momento o tributo da queda.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Eclipsar a sombra

Eugène Atget - Eclipse (1911)

O desejo dos homens, no delírio com que se compreendem, é o de eclipsar o próprio Sol, tomando eles o lugar dianteiro e oferecendo-se como a luz do mundo. Disfarçados de faróis, os seres humanos transformam a vida sobre a Terra na mais trágica das comédias. A viagem que o Viandante almeja não é em direcção à ribalta. Mais do que eclipsar o Sol, o Viandante quer eclipsar-se a si mesmo, apagar a sua sombra e deixar que a Luz brilhe na mais pura luminosidade.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Haikai do Viandante (182)

Brett Weston - Bamboo Forest, Japan (1970)

um vento de cinza
na floresta de bambu
fogo e silêncio

quarta-feira, 2 de abril de 2014

A convocação do deserto

Charles Clifford - Catcus e Agaves (1862)

Há sinais na paisagem que anunciam o deserto. O que se perfila perante o viandante não é uma aventura num território inóspito e adverso, a porta para a glória dos triunfadores e dos que ultrapassam os limites que o corpo e a natureza impõem aos homens. Se o deserto chama o viandante é para lhe mostrar que ele não é mais do que um grão-de-areia na vastidão infinita do ser. No deserto, mesmo que este seja a mais fértil das planícies, o viandante é convocado para a humildade, essa tão estranha palavra para ouvidos e corações modernos.

terça-feira, 1 de abril de 2014

A noite dos sentidos

Robert Lebeck - Leningrad, Russia (1962)

É terrível a memória que nos traz a desmesura das praças vazias, aqueles lugares ainda não tomados pelo azougue dos automobilistas, sítios terríveis onde se escuta o eco do poder. Ali o viandante sente-se reduzido à sua verdadeira dimensão. Um grão de pó perante o sublime que emana da opressão nascida do delírio humano. Uma alma deslumbrada pela luz e que reduz os seus anseios à chegada da escura noite dos sentidos.