terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Poemas do Viandante (444)

Joaquin Sorolla y Bastida - Mar cinzento (1908)

444. Ano velho

Acaba cinzento o ano,
vestido de sombra,
coberto de cinza.

Nuvem obscura
no silêncio do calendário,
no rumor do tempo.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Construir pontes

Pierre Bonnard - Le Pont des arts (1905)

Construir pontes, estabelecer relações, ligar o que está desligado, enfrentar a separação. Na ideia de separação pensa-se o corte que o homem instaura com a envolvência, tornando-a estranha a si mesmo. É esta mesma estranheza que se torna inquietante e que desencadeia as tentativas sempre frustradas de dominar a realidade da qual o homem se cindiu. Qual a verdadeira destinação de cada homem? A de ser um pontífice, um construtor de pontes, a de unir aquilo que ele mesmo separou.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Abandonar-se ao vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

Talvez o primeiro chamamento do espírito, chamamento audível, se dê com a primeira grande decepção consigo mesmo. Pensa-se que é possível parar o vento com a forças das próprias mãos, mas, indomável e imperturbado, o vento segue o seu caminho. O ego faz a experiência da sua pequenez, da irrelevância dos seus desejos, do nada que na verdade é. Tudo se joga então nessa hora. Ou esse pequeno eu procura proteger-se e entregar-se à solidificação - ou à petrificação - de si mesmo, ou, aceitando a morte, abandona-se ao sopro do vento, tornando-se vento com o vento, espírito com o espírito.

sábado, 28 de dezembro de 2013

A onda e a vida

Frantisek Kupka - The Wave (1902)

Pensar a vida a partir da metáfora da onda. Como deve o viandante lidar com a onda? Enfrentá-la a pé firme? Cavalgá-la como um surfista? Atravessá-la como um exímio mergulhador? Não, o caminho do viandante não é o do poder nem o da dominação, tão pouco é o da destreza. A força para nada lhe serve e a habilidade não o salva. Ao viandante resta-lhe ser onda na onda, vida na vida. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Sobre a memória

Sendo - Da memória (1995)

É possível que possamos simbolizar a memória pela ruína. O que resta da vida vivida é essa ruína a que damos o nome de memória. É com Platão que surge a referência a uma outra memória, aquela que a alma teria da contemplação das Ideias, essas realidades que estão para além da vida vivida, seja no plano biológico, seja no plano social. É a memória de algo que a experiência existencial não poderia nunca pôr à nossa disposição, de algo que a própria vida representa já uma ruína e uma degradação. A partir desta concepção, pode-se pensar a memória já não como uma faculdade passiva e impotente perante a vida, mera produtora de imagens da ruína do real, mas como uma faculdade activa que, entre as ruínas da vida, nos abre para o essencial, para o que é efectivamente real.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A sombra do Natal

Kings College Choir - Christmas Carols 24 dec 2011

Talvez no dia 26 de Dezembro tudo volte ao que está e isso representará para muitos uma decepção, como se o Natal fosse uma trégua, mas uma trégua que não anuncia o fim da guerra. Essa decepção, porém, está fundada numa imagem infantil e mágica do Natal, imagem essa que se projecta na compreensão da vida e do mundo. Não se compreende que o milagre não está em o Natal transformar magicamente a vida com o seu cortejo de necessidades e malevolências, mas na sua própria existência. O milagre está em se ter descoberto uma noite e um dia onde a desumanidade contumaz da humanidade é questionada. Essa luz, ao embater na dura realidade de 26 de Dezembro, projectará uma sombra que, aqui e ali, lembrará aos homens que a vida não tem de ser um exercício contínuo de maldade e servidão. Exultemos. Um feliz Natal.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Poemas do Viandante (443)

Marc Chagall - Jew at Prayer (1912-13)

443. Descer mais e mais ainda

Descer mais e mais ainda.
Descer à fonte onde o dia nasce.
Descer à foz onde a vida finda.
Descer à caverna onde a noite cresce.

Assim inicio a minha prece,
Na noite fria, na tempestade do coração,
No vazio que o mundo oferece,
No nada criado para a solidão.

E embarcado no navio da eternidade,
Sulco, entre ondas e brumas, oceanos.
E adentrando-me na idade,
Esqueço o jardim onde plantei os anos.

Descer mais e mais no mar da memória.
Descer à luz que rasga o dia.
Descer à tormenta que faz a história.
Descer ao lugar onde nasce a alegria.

domingo, 22 de dezembro de 2013

O Magnum Mysterium

Tomás Luis de Victoria - O Magnum Mysterium (The Cambridge Singers)

Poder-se-ia pensar que o mistério maior seria o da Virgem trazer no seio e dar à luz o filho de Deus. Isso, contudo, seria ficar pelo sentido literal das narrativas. Mas as narrativas apenas simbolizam o mistério decisivo da existência do mundo e de nele haver seres dotados de razão. Para nós, que somos filhos de uma educação iluminista e racionalista, na qual a ciência joga o papel central, nada é mais estranho do que falar de mistério. A ciência enfrenta e resolve quebra-cabeças (puzzles), o mistério é-lhe estranho. Mas talvez tudo o que é decisivo para o destino de cada um seja do domínio do mistério e não do quebra-cabeças racional. Dito de forma dogmática: tudo o que é decisivo na vida do homem é um magnum mysterium, e é isso que está em jogo nestes dias de Natal.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Poemas do Viandante (442)

Paul Cézanne - Morning in Provence (1900-1906)

442. Solstício de Inverno

Chegámos ao dia mais pequeno do ano
e, presos na fraqueza da luz, aguardamos
o barco que nos levará ao mar aberto,
à luminosa água dos dias que hão-de vir.

Tudo se transfigura nestas terras de musgo.
As rochas crescem para a desmesura da noite,
os rebanhos seguem o caminho eterno,
os anjos velam o dia em que cantarão.

Nas terras altas, haverá neve e frio.
A luz bruxuleante que se vê ao longe
começa a crescer sobre a solidão da terra,
inscrevendo nas trevas o sol da madrugada.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Anunciação e prescrição

Edward Burne Jones - Anunciação (1876-79)

Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum (Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra). Lucas, 1, 38.

A narrativa de Lucas estabelece, pelos menos nas traduções em português, uma surpreendente relação entre dois actos de linguagem, a anunciação e a prescrição, cujos efeitos solicitam sempre e mais uma vez o trabalho de interpretação. O arcanjo Gabriel, o mensageiro divino, anuncia algo que irá suceder, que Maria irá conceber sem que tenha conhecido homem. Isso acontecerá por vontade do Altíssimo. Nesta anunciação, há dois aspectos centrais. Por um lado, o facto de Maria ir conceber não deriva do seu livre-arbítrio, da sua aquiescência, nem de qualquer jogo tensional entre desejo e vontade. Há uma não-humanidade nesta anunciação. Por outro, aquilo que a anunciação anuncia apresenta-se como um acontecimento natural, que se impõe aos homens, independentemente da sua vontade e da sua liberdade. É como se a natureza - entendida como hiper-natureza ou sobre-natureza - recobrasse a sua ascendência sobre a liberdade humana. A anunciação do arcanjo a Maria é do domínio da pura factualidade. Nada é prescrito a Maria, nenhuma norma ou mandamento está presente na anunciação. Do ponto de vista linguístico, a anunciação do arcanjo Gabriel em nada difere da informação, também ela uma anunciação,  que um meteorologista fornece sobre a aproximação de um furacão.

Onde surge a prescrição é na resposta de Maria. Ela começa com uma declaração, Eis a escrava do Senhor, e é concluída de forma imperativa: faça-se em mim segundo a tua palavra. Não se trata de um simples assentimento ou a expressão de um mero consentimento. Trata-se agora de uma vontade que afirma imperativamente, a partir do seu livre-arbítrio, querer a vontade que, como uma sobre-natureza, se lhe impõe necessariamente. Esta prescrição não a dirige ela a si mesma, mas é uma prescrição que é dirigida, através do arcanjo Gabriel, a Deus, ao Senhor da escrava. Podem-se interpretar as palavras de Maria do seguinte modo: Quero que a Tua palavra seja mantida, que a cumpras. Num estranho exemplo da dialéctica do senhor e do escravo, a escrava eleva-se ao senhorio ao prescrever ao Senhor a vontade deste. É neste acto prescritivo que Maria se liberta da sua condição de escrava, assumindo em si a Vontade que o arcanjo lhe anunciara como Vontade sobre natural marcada pela sua inviolável necessidade. Este processo, que se inicia com a anunciação, passa pela prescrição, termina com a libertação de Maria. O que significa esta libertação? Significa que ela transformou, ao prescrever ao Senhor a vontade deste, o livre-arbírtrio, essa possibilidade de escolher sem ser coagida, em liberdade de realização e de criação. Ela trouxe ao mundo dos homens aquilo que o ultrapassa.