sábado, 30 de novembro de 2013

Da paisagem invisível

Giorgio Morandi - Paisagem (1943)

Raramente percebemos que aquilo que atrai o nosso olhar numa paisagem (e uma paisagem não passa de uma metáfora) não é o que surge, aos nossos olhos, como belo e esplendoroso. O que encanta e prende a atenção do homem é o não visível que se manifesta no espectáculo com que somos confrontados e que, pelo sublime que nele se manifesta, nos cega para esse invisível que sustenta o visível e nele se oculta.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O silêncio da presença

Filippo Tommaso Marinetti - Action (1915-16)

A acção tornou-se, com a Modernidade, o elemento central da cultura ocidental. Foi ela que, juntamente com a ciência, permitiu o espantoso desenvolvimento técnico e as formas de vida civilizada que são as nossas. Foi esse triunfo da acção que permitiu a glória de uma forma artística como o romance ou, mais tarde, o cinema. A acção com os seus resultados tem, todavia, um brilho tão intenso que não nos permite perceber que existe, para além dela, um reino que é tão ou mais importante para o homem quanto o é o da acção, o reino da contemplação. Esta não é uma mera suspensão do movimento e da mobilização das nossas forças. Contemplar não é tão pouco pensar, ainda uma forma de agir. Contemplar é um tornar-se presente, em silêncio, perante o mistério da vida e do ser. E foi este espaço silencioso onde o sentido se torna presente que a acção matou. Foi o silêncio da presença que desapareceu.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Haikai do Viandante (168)


Segredos d'areia
abrem-se silenciosos
pela maré-cheia. 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

A consciência melancólica

Paul Serusier - Eva bretã (1890)

A solidão melancólica de uma Eva abandonada no paraíso permite perceber uma outra faceta do mito do pecado original. Não é apenas a conquista de uma certa sabedoria trazida pela experiência. É também um acto de ruptura, de cisão de uma unidade originária. Separada, Eva, toma consciência de si, mas toda a consciência de si parece ser uma consciência infeliz. Não foi apenas a morte que o acto de desobediência de Adão e Eva trouxe consigo. Foi ainda uma consciência melancólica tingida pela nostalgia desses tempos em que ainda não se sabia quem se era.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Viagem sem fim

Edvard Munch - Alameda com flocos de neve (1906)

Quando o caminho se torna gélido, quando a paisagem escreve no coração do homem  a palavra solidão, quando tudo parece indicar o conforto do lar, é nessas horas tormentosas que o viandante deve tornar mais firme a sua decisão de prosseguir no caminho. O frio, a neve, o anseio do calor são ainda ilusões, armadilhas que se abrem na viagem. Aquilo que o espera está para além das estações, está para além do temor e do desejo do homem. Há que continuar e isso é o essencial. A viagem não tem fim.

domingo, 24 de novembro de 2013

O escárnio do homem

Emil Hansen - O escárnio de Cristo

Na cena onde Cristo, no seu caminho para a cruz, é vítima de escárnio não encontramos apenas a referência a um acontecimento singular da história inaugural de uma certa religião. Encontramos simbolizada a atitude do homem comum por tudo o que é essencial na humanidade. A radicalidade do cristianismo tem esse estranho poder de suscitar, na vulgaridade que todos trazemos em nós, a necessidade de a defender e, por esse motivo, apoucar o fundamental, tentar torná-lo risível e, devido a essa risibilidade, entregá-lo à morte. O risível objecto de escárnio, que a cena crística simboliza, não é o ridículo das nossas pretensões, mas as nossas possibilidades mais autênticas, a verdade que se esconde no fundo do coração do homem.

sábado, 23 de novembro de 2013

A configuração de si

Albert Gleizes - Figura (1914)

Talvez toda a viagem - e a viagem não é outra coisa senão a vida - a que o viandante se propõe seja um trabalho de configuração. Configurar significa dar forma a qualquer coisas, dar-lhe, literalmente, figura. Ao avançar na via, ao inventar a senda por onde caminha, o viandante está, muitas vezes sem o saber, a traçar uma figura, a configurar. A configurar o quê? Ao caminhar o viandante tece a sua própria figura. Não aquela que ele imaginou ser a sua, nem aquela que ele desejou que fosse, mas a que o caminho - com as suas graças e, também, as suas desgraças - lhe impôs. A figura que a sua liberdade se destinou a traçar para si.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Poemas do Viandante (439)

William Congdon - Winter (1950)

439. abro a mão para o gesto sobre o mar

abro a mão para o gesto sobre o mar
oiço as ondas romper o matagal
ervas brancas batidas pelo vento

inverno, frio inverno, sol e sombra
água nas ruas, murmúrios, labaredas
a velha servidão negra e cansada

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O inverosímil do amor

Nicolás de Lekuona - Amor inverosímil (1932)

A expressão amor inverosímil capta aquilo que é mais surpreendente no amor. Que ele toque a espécie humana é, olhando para os negócios o mundo e da vida social, o que há de mais inverosímil sobre a terra. É tão inverosímil que a própria razão se sente derrotada e, na surpresa dessa presença, confessa que há nele, no amor, mais do que o homem lá pode colocar. O amor é inverosímil porque nele o sobre-humano se revela na estreiteza egoísta desse animal a que chamamos homem.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O sonho da harmonia

Paul Signac - Au temps d'harmonie (1894)

Talvez o maior anseio do coração do homem, mesmo daquele que se transviou por complete das normas da sociabilidade humana, seja o retorno a uma vida de harmonia, o retorno ao paraíso perdido. A modernidade sonhou, através das diversas utopias que foi criando, esse paraíso. Sonhou-o de forma impaciente e febril, sonhou-o como se ele dependesse do engenho e da indústria dos homens. Esse sonho tornou-se pesadelo. As utopias deram lugar a distopias e a harmonia sonhada, aos piores conflitos da triste história humana. Talvez a harmonia não seja algo que caiba ao homem, talvez, e em alternativa, o caminho para esse harmonia não passe pelas realizações exteriores, mas pela procura de um centro interior onde entremos em harmonia connosco e, a partir daí, com os outros.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Da natureza dos eclipses

Albert Bloch - Eclipse azul (1955)

Na verdade, um eclipse não é, para nós homens, essencialmente um acontecimento astronómico onde a luz de um astro é ocultada pela interposição de outro. Um eclipse é o símbolo da condição humana, da situação do homem na Terra. Entre o homem e a Luz há sempre a interposição de qualquer coisa. E o eclipse é tão continuado que o homem chega a pensar que a Luz não existe.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Haikai do Viandante (167)


Um céu de gaivotas
cobre de cinza e chumbo
as ondas revoltas.

domingo, 17 de novembro de 2013

A libertação do destino

Raquel Forner - Destinos (1939)

Se o viandante se põe a caminho não é para cumprir um destino ou para certificar a inexorabilidade de um fado. Não, o pôr-se a caminho do viandante visa enfrentar o destino e dissolver a fatalidade. A vida espiritual é a aprendizagem íntima de ser livre, a conquista da liberdade. Não da mera liberdade social, mas da liberdade que nasce da emancipação da fria e cruel necessidade, que nasce da libertação de todos os fados e de todos os destinos.

sábado, 16 de novembro de 2013

Temor, respeito e amor

Egon Schiele - Cidade amarela (1914)

Em certa cidade, havia um juiz que não temia a Deus nem respeitava os homens. (Lucas, 18:2)

A frase de Lucas - frase que ele põe na boca de Cristo - traça a visão tradicional do fundamento das sociedades. Por ordem de importância e eficácia sociais, a justiça fundar-se-ia, então,  no temor do absoluto, nível metafísico, e no respeito pelo outro, nível moral. Para além disto, nesse plano comunitário, resta o arbítrio do poder e a violência da política. 

Mas para cada homem, na sua singularidade e no caminho que deve consumar o seu destino, o respeito moral e o temor metafísico são ainda obstáculos. Deixados como único elemento da experiência, reduzem o homem a membro do rebanho, um cego guiado por outros cegos. Aquilo que é fundamental deixa-se descrever melhor pela palavra amor do que pelos termos respeito e temor. Todavia, estamos ainda muito longe de compreender o conteúdo que se oculta numa palavra tão banalizada como é "amor".

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Sem herança

Aurelio Arteta - Quatro gerações

Na sucessão de gerações, nós podemos medir o progresso material e até moral da humanidade. Mas estamos ainda num nível superficial daquilo que é o mais importante. O nascimento da vida espiritual, a abertura para o mistério do ser, o caminho para a realização de si mesmo, tudo isso se passa a um nível diferente. São assuntos que dizem respeito ao indivíduo, à singularidade da sua vida e da sua experiência. Os avanços de um não são transmissíveis para o seu filho, mesmo este seja apenas aquilo a que se convencionou chamar filho espiritual. Na vida do espírito não há herança pronta a desfrutar. A única herança é a indicação de que cada um tem de fazer o seu caminho pessoal e único.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O corpo solitário

Mario Sironi - Solidão (1925-26)

Não é na face que apreendemos a solidão. No rosto, podemos descobrir a amargura, o desespero e, acima de tudo, o ressentimento para com a vida. Mas amargura, desespero e ressentimento ainda são formas comunicacionais, ainda pressupõem um outro a quem se dirigem, seja como censura, seja como pedido de auxílio. O corpo, porém, é o lugar da solidão, onde ela se manifesta e se torna dor. A dor de não ser partilhado.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Uma metafísica do corpo

Lucien Freud - Benefits Supervisor Sleeping (1995)

A pintura de Lucien Freud é contemporânea de uma exacerbada esteticização do corpo humano, esteticização que é uma das manifestações centrais do contemporâneo culto do corpo. Muitos dos nus de Freud, mesmo aqueles que retratam pessoas cujo corpo está mais em conformidade com a norma aceite, provocam no espectador um sentimento de desconforto ou mesmo de desagrado. Esta contra-idealização do corpo - encontramo-la também, ainda que de forma bem diferenciada, em pintores anteriores como Egon Schiele - devolve-nos a uma questão central. Essa não é a que parece mais óbvia. Óbvio seria perguntar como deve ser o corpo. Qual a norma? Mas a pintura de Lucien Freud questiona a própria ideia de norma. O que emerge é uma dupla pergunta. O que é o corpo? O que significa ter um corpo? A pintura de Freud abre-nos, assim, não para uma física idealizada e normativa, mas para uma metafísica do corpo, para uma investigação sobre o mistério da encarnação.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A falta e o excesso

Tamara de Lempicka - The Blue Virgin (1934)

Em Blue Virgin, o estranho quadro de Tamara de Lempicka, encontramos uma meditação sobre a essência da virgindade, daquilo a que se poderia chamar uma vida consagrada. Não é a recusa de uma experiência sexual nem de abertura ao mundo o que está em causa. É antes a afirmação de uma plenitude que existe em si mesma. O recolhimento que vemos não é negação do exterior, mas afirmação pletórica da vida interior, de uma experiência superabundante que, por não necessitar da exterioridade, ganha uma luz própria capaz de iluminar essa mesma exterioridade. O que observamos no quadro não é a falta, mas o excesso.

domingo, 10 de novembro de 2013

Haikai do Viandante (166)


Rocha silenciosa,
aberta para o  segredo
que se abre na terra.

sábado, 9 de novembro de 2013

Diálogos sobre a morte

Karl Schmidt-Rottluff - Conversation on Death (1920)

Poder-se-á falar num diálogo sobre a morte? Platão, no Fédon, colocou a discussão sobre a imortalidade no dia em que Sócrates é executado. Não se tratou de um efeito cénico ou de uma estratégia retórica. Foi, antes, a constatação de que mesmo que se queira falar da morte, só é possível falar da vida, pois, em si mesma, a morte é destituída de sentido . Só a vida lhe dá um sentido e um horizonte.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Poemas do Viandante (438)

Ferdinand Hodler - O dia (figura) (1899)

438. A volúpia de um sonho na manhã

A volúpia do sonho na manhã
abre um caminho de luz
na cama desfeita da noite.

A floresta espera o teu rosto,
o sagrado bulício do silêncio,
a chama do nome que te deram.

Conto as horas que faltam,
suspiro com o vento na ramagem,
brilho se o sol cai em mim.

Sentado sob a copa do outono,
espero que chegues,
um rumor de passos na terra.

Uma sombra toca-me ao de leve.
Trémulo, volto-me para
o prodígio do teu corpo na erva.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Tempo de Outono

Ernst Ludwig Kirchner - Sertigtal im Herbst

São as horas de recolhimento, de meditação sobre o caminho percorrido, de alegria profunda pela multiplicidade de cores que cobrem a natureza. São cores da morte, dir-se-á. Não, são cores da vida, desse estranho mistério que contém dentro de si a própria morte. São cores que chamam pelo pensamento, pela hora da renúncia, pelo desejo de retomar a viagem sem fim.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Bezerro de ouro

Emil Nolde - Dance Around the Golden Calf

Mais que descrição factual, a história do bezerro de ouro é símbolo eterno da nossa venalidade. Frágeis, os homens rapidamente trocam o seu caminho, aquilo que, no segredo do seu coração, chama por eles, pela adoração do bezerro de ouro. E nunca como hoje o bezerro de ouro esteve tão presente no mundo.

sábado, 2 de novembro de 2013

A verdadeira herança

Alejandro Mesonero - Deserdados

O que leva o Viandante ao seu caminho, à busca daquilo que chama por ele? Talvez seja o sentimento de ser um deserdado da terra. Ser deserdado significa que foi excluído de um bem que, por via da filiação, lhe deveria pertencer. Mas não é essa exclusão que move quem se põe a caminho. É uma exclusão muito mais funda e radical. É a súbita percepção de que todos os bens que poderia herdar ou adquirir são irrelevantes e não são mais do que poeira que se dissolve no horizonte. Essa hora de decepção leva ao desejo de encontrar aquilo que lhe cabe, a sua verdadeira herança, a prova da sua filiação. É a voz dessa herança, o sentimento de um vínculo, que chama pelo Viandante e o põe a caminho e no caminho.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Haikai do Viandante (165)


pedra sobre pedra
uma imagem do passado
a glória da terra

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Autoridade espiritual e poder temporal

Albert Gleizes - Autoridade espiritual e poder temporal (1939-40)

Ao considerar a velha expressão autoridade espiritual e poder temporal no âmbito da divisão das funções de governo do mundo perde-se aquilo que ela diz em si e por si mesma, para além das esferas privadas da religião e da política. O poder, pela sua natureza temporal, traz em si a marca da sua finitude. Todo o poder é temporal e, por isso mesmo, temporário. O que marca o espírito é, por seu turno, a autoridade e nesta o que está a ser pensado não é o mando ou a ordenação, a não ser como sentido derivado, mas a autoria. O espírito é autor e é nessa e dessa autoria que tem e lhe advém a autoridade. O poder é sempre caduco, o espírito cria e cria-se continuamente.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Abrir a janela

Karl Schmidt-Rottluff - A Janela Aberta (1937)

A primeira etapa da viagem termina quando o viandante abre a janela e depara com o vasto mundo. Estranho que uma etapa termine quando ainda não se começou a andar, quando ainda não se saiu de casa. O dramático, porém, é que a generalidade da espécie humana, por muitas milhas que tenha percorrido, nunca sai da sua casa, desse lugar onde tudo se refere a si. Nunca sai de si e dos seus pequenos, por grandes que sejam, interesses. Abrir a janela é então a primeira e decisiva etapa, pois abrir a janela não é outra coisa senão o abrir-se ao acontecer e ao que, no devir, nos chama.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Poemas do Viandante (437)

Ferdinand Hodler - Emoção (1894)

437. O súbito alvor do anjo sobre a terra

O súbito alvor do anjo sobre a terra,
a memória branca descarnada da face,
água tépida onde exausta te olhas.
Figura de cera que jaz dentro de mim,
símbolo de fogo ao raiar do mundo,
a promessa duma vitória já perdida.

Desfolho o calendário e aguardo o dia,
aquela hora em que venhas branca e nupcial
resgatar do sonho o desejo que nele se esconde.
Que nome te darei quando tudo cessar,
e as trevas forem apenas o rumor do incenso,
o desenho enegrecido pela luz bravia do mar?

domingo, 27 de outubro de 2013

Um rasgão no véu

James Ensor - Calvário

Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. (Lucas 18:14)

Como, numa sociedade como a nossa, poderá ser recebida esta palavra de Lucas? Os tempos modernos têm na sua essência a exaltação do eu. Tudo está organizado para fortalecer e glorificar esse eu exaltado, um eu que, segundo o ethos moderno, deve seguir o seu interesse próprio. A própria medida do comportamento racional é-nos dada pelo acordo da acção com a defesa do interesse próprio. A humilhação do eu é, portanto, um desafio à lógica dos nossos dias, uma proposta que não pode ser olhada a não ser com desdém. Um escândalo, para retomar uma velha palavra. Mas não será o escândalo um rasgão no véu com que a realidade se cobre?

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Haikai do Viandante (164)


Terra, pedra e fungos.
E do velho caos um deus
fez o novo mundo.