quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Do verdadeiro encontro

Edvard Munch - Meeting (1921)

Os verdadeiros encontros são sempre inesperados, acidentais, filhos do acaso. Mas depois de acontecidos, logo se repara que os regeu não o indeterminismo mas a pura necessidade. Mais uma vez deslizamos na pura contradição. Os verdadeiros encontros preparam-se em nós, sem que saibamos o que está a ser preparado, sem que saibamos o que nos espera, sem que saibamos o que deveríamos sequer esperar e encontrar. Não há nada mais secreto que um verdadeiro encontro, embora não haja nada mais cristalino que os verdadeiros encontros.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Haikai do Viandante (161)


Espuma na areia.
Vento e memória de água
que o Estio incendeia.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

De porto em porto

Terence Cuneo - De Puerto a Puerto

Um porto não é um lugar para permanecer. O viandante chega e, mal põe os pés em terra, logo se prepara para partir. O seu lugar não é a terra firme da certeza, mas o mar revolto e as trevas da noite. Atrás de si apaga-se o rasto e é como nunca houvesse por ali passado.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A música das esferas celestes

Francisco Iturrino - Romaria (1905-1909)

A tradição religiosa ocidental, cujo núcleo é o cristianismo, é atravessada por uma ambiguidade que nos pode deixar perplexos sobre o significado da vida neste mundo. Por um lado, ela é um vale de lágrimas onde os homens suspiram, gemem e choram. Por outro, é uma romaria, onde a peregrinação e a festividade se combinam num arraial em perpétua deslocação. Facilmente se percebe como estas duas concepções reflectem a visão do inferno e a do paraíso celeste. Mas isso é secundário. O essencial é compreender que as visões não devem ser opostas mas vistas como complementares. Sim, a vida pode ser um vale de lágrimas - para muitos, pelo sofrimento recebido, uma antevisão mesmo do inferno - mas aquele que peregrina, que vai na romaria, atravessa esse vale de lágrimas dançando e cantando, pois aquilo que chama por ele e o guia soa-lhe no coração como a mais pura e envolvente música. Provavelmente, a música que o velho Pitágoras dizia provir da revolução das esferas celestes e para a qual o hábito nos tornou surdos.

domingo, 6 de outubro de 2013

Fora do quarto encantado

Carlo Carra - La Camera Incantata (1917)

Muitas vezes a vida espiritual, aquela que se funda na contemplação, é vista, na nossa moderna civilização técnica, como uma fuga mundi, um encerrar-se do self num quarto encantado. Isso, porém, é apenas um desvio à verdadeira vida espiritual, uma fuga não ao mundo mas às injunções do espírito. A vida espiritual exige a plena atenção ao que nos solicita e a pura presença perante o acontecer. Ela só é possível quando se quebra o encantamento que encerra o sujeito no quarto encantado, sem ceder à tentação do activismo, que a mobilização, um dos elementos centrais da nossa civilização, impõe ao homem moderno.

sábado, 5 de outubro de 2013

O acaso e a lei

Jean Arp - Arrangement according to Laws of Chance (1916-17)

Poderemos pensar no acaso ainda uma legalidade? Não será uma contradição falar de leis do acaso? Não será acaso aquilo que se furta a toda a legislação natural? Se olharmos para a natureza, talvez faça sentido negar a relação entre acaso e lei. As leis da natureza explicam a priori o acontecer dos fenómenos naturais. Mas no mundo do espírito são os acasos e os acidentes que desenham a posteriori uma legalidade que o espírito vai descobrindo como a sua lei. Não uma lei dada e pré-determinada, mas uma lei suscitada pelo devir e pelo acontecer. Aquela que o viandante diz: esta é a minha Lei.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Haikai do Viandante (160)

Vittorio Avondo - A Fiumicino (1879)

Velha nostalgia.
Água, barcos, céu de cinza.
Eis que nasce o dia.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Sobre o corpo

Umberto Boccioni - Dinamismo del cuerpo humano - Boxeador (1913)

Pela juventude ou pela velhice, pela fraqueza ou pela força, pela doença ou pela saúde, o corpo tem sido sempre um adversário temível e invencível.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Reconstruir a harmonia

Paul Signac - Au temps d'harmonie (1894)

Por que razão o viandante se põe a caminho? Porque uma desarmonia se instalou dentro dele e abriu uma brecha que ameaça tornar-se em abismo. A viagem não é a fuga ao abismo, mas o esforço supremo de o olhar de frente e, esperando uma graça, conseguir unir aquilo que em si se afastou e, desse modo, reconstruir a harmonia que imaginou existir antes que a cisão de si consigo mesmo se instalasse.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Aprender a escutar

Paul Ackerman - Discussão

A discussão e o debate são, por certo, virtudes da vida social e do espaço público. Fazem parte da harmonia social, onde a violência dos actos é substituída pela troca de palavras e ideias. Mas aquilo que é uma virtude social pode transformar-se num obstáculo para aquele que, concedendo ao mundo o que é do mundo, procura um caminho que vá para além dos negócios mundanos. Aqui a discussão perde o sentido e começa a dura disciplina da escuta. Aprender a escutar é então o essencial.