segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Pura presença

Karl Schmidt-Rottluff - Antiguidades (1928)

As tradições espirituais não são colecções de antiguidades, nem o passado aquilo que as determina e, dessa forma, haveria de determinar o viandante. O espírito deve desprender-se da sua fixação no passado - assim como da ânsia do futuro - e abrir-se ao puro acontecimento, à emergência daquilo que é na sua eterna novidade, à pura presença daquilo que o convoca ao caminho.

domingo, 29 de setembro de 2013

Poemas do Viandante (435)

Robert Motherwell - Abierto roto (1974)

435. Este lugar que se abre

este lugar que se abre
no sopro da noite
este vento que rompe
nos dedos da manhã
este vermelho que arde
no sangue do coração

este silêncio que brilha
no fulgor do outono

sábado, 28 de setembro de 2013

Sobre o desencantamento

Luc Tuymans - Desencantamento (1990)

Na sequência do Iluminismo e da análise de Max Weber, foi propagada a ideia de que o desencantamento é o processo que nos leva do mito à razão, que nos conduz de uma vida fundada no encantamento para uma vida organizada segundo processos racionais e burocráticos. Há em tudo isto, contudo, uma certa unilateralidade. O desencantamento que supera a interpretação mítica do mundo não conduz, obrigatoriamente, a uma vida organizada segundo os preceitos de uma racionalidade burocrática e calculadora. A libertação do encantamento mítico pode ser um passo decisivo no confronto consigo e com aquilo que, no mais fundo do espírito do homem, o convoca e lhe dá uma destinação e uma missão a cumprir.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Danças e narrativas

Juan Genovés Candel - Narracíon (1982)

O meu avô estava já paralisado. Um dia pediram-lhe para contar uma história que ele tivesse vivido com o seu mestre. Então ele contou como esse homem santo que era o seu mestre tinha o costume de saltar e dançar quando rezava. E ao contar isto o meu avô levantou-se, e o relato envolveu-o de tal maneira que ele começou a saltar e a dançar para mostrar como o seu mestre fazia. Desde esse instante ficou curado. (Martin Buber, apud José Tolentino Mendonça, Atual do Expresso, 27/09/2013).

Esta singular história que Martin Buber conta do seu avô não serve apenas para sublinhar a extrema importância do acto de contar e ouvir histórias na economia da vida humana. Ela sublinha a natureza profundamente física - corporal - daquilo que se convencionou chamar a experiência espiritual do homem. Saltar e dançar, essas formas de suspensão momentânea da gravidade, implicam uma libertação do corpo daquilo que o prende (literal e metaforicamente à terra) e a sua concentração no acto de orar. Ao saltar e dançar todo o ser se funde numa unicidade e é essa unicidade que opera a relação com o sobre-humano. Tudo isto, porém, está enquadrado num processo de transmissão narrativo. A narrativa tem o poder de desencadear as operações mais fundas e secretas que se escondem no interior do ser humano, aquelas que o podem levar à dança e, como no caso do avô de Buber, à cura.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Haikai do Viandante (159)

Pierre Bonnard - Lumière de soir, près de Vernon (1922)

Esta luz da tarde,
sobre os campos incendiados,
é fogo que arde

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Caminho de luzes

Miquel Barceló - Chemin de Lumières (1986)

Nada leveis para o caminho: nem cajado, nem alforge, nem pão, nem dinheiro; nem tenhais duas túnicas. (Lucas 9:3)

Há no texto de Lucas duas condições essenciais para o viandante. A simplicidade e a disponibilidade. Pela simplicidade, o homem despe-se do inútil, assume a sua condição de pobre, vive a pobreza de espírito. Esta simplicidade, contudo, está conjugada com a mais pura disponibilidade. Nada levar para o caminho significa estar disponível para aquilo que o caminho lhe oferecer. Aquele que procura a luz, vai por um caminho de luzes. Não leva lanterna, aguarda que a luz chegue e, como uma graça, caia sobre ele. E enquanto se mantiver disponível, enquanto não se apropriar de nada, caminhará de luz em luz, de claridade em claridade, mesmo que o caminho, muitas vezes, se faça na noite mais escura que possa existir.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Modelos arquetípicos

Pablo Picasso - Família à beira-mar (1922)

Raramente se percebe como os símbolos e arquétipos religiosos dão forma à vida e à cultura, muito para lá daquilo que é estritamente religioso. Este quadro de Pablo Picasso só ganha sentido pleno se enquadrado no arquétipo da Sagrada Família. O facto do artista ter pintado o quadro significa já a sacralização daquilo que nele se torna presente. Todo o acto artístico é um acto de sagração daquilo que apresenta como conteúdo da obra de arte. Mas esta sacralidade da família só se torna possível numa cultura que possua um arquétipo sacralizante da família. Se todo o par constituído por um homem e uma mulher é uma actualização do par arquetípico Adão e Eva, também toda a família representada por um homem, uma mulher e uma criança actualiza a Sagrada Família do cristianismo, colocando na criança, na sua correspondência com o Menino Jesus, o princípio de esperança que anima a humanidade. 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Poemas do Viandante (434)

Odilon Redon - Eva

434. Essas mãos que me anoitecem

Essas mãos que me anoitecem
e trazem um raio de luz.
Essa voz que declina em mim
e ergue uma cidade de púrpura.
Essas dores que chamam pelo outono
e são frutos caídos no coração.

Um túnel abre-se sobre o pântano
e no sopro da tua boca nascem aves,
ramos de violetas, um velho castanheiro
cerzido na luz sonâmbula da noite.

Quero dizer o teu nome sobre o meu,
erguer-te do abismo da memória
e deixar cantar na manhã
o rio venerável, o sangue e o vinho,
as primícias de um corpo que se oferece
no altar outonal do coração.

domingo, 22 de setembro de 2013

Acidente e queda

Alfonso Ponce de Léon - Acidente (1936)

A Queda é um símbolo estruturante da cultural ocidental. A narrativa do Génesis bíblico tornou-se, através da penetração da religião judaico-cristã na Europa, o modelo onde qualquer tipo de decadência e de abaixamento de nível são pensados. Raramente se pensa, porém, a ligação entre acidente e queda. Esta ligação é essencial no mito de Adão e Eva. A queda do homem é fruto de um acidente. Isto não significa que, na economia do mito bíblico, as decisões tomadas não sejam deliberadas e não se possam imputar ao par edénico. Significa que essas decisões não se prendem com o que é essencial na humanidade, mas com o que é meramente acidental. É por isso que a mesma cultura judaico-cristã pôde pensar e propor como modo de vida a restauração de um estado perdido por acidente.

sábado, 21 de setembro de 2013

A condição da liberdade

Ivonne Sánchez Barea - Liberdade condicionada (2000)

O homem recebeu duas qualidades que parecem incompatíveis. A liberdade e o estar condicionado. A liberdade começa por ser uma liberdade condicionada. Mas a viagem que se apresenta como destino do Viandante tem por finalidade torná-lo aquele que é, sobre a Terra, a condição de toda a liberdade.