sábado, 31 de agosto de 2013

A morte da anunciação

Paolo Ricci - Anunciação (1973)

Vivemos num mundo onde, falsamente, se promove o debate como a grande virtude social. No centro dessa virtude, existe uma outra que orgulha muito os seus detentores: o poder argumentativo. Mas se nada de essencial nascer desse debate e se todo o argumentário não passar de um exercício da vaidade humana? Em tempos houve um outro caminho e uma outra virtude. O intermediário - um anjo, um deus, uma ave - anunciava algo aos homens. A virtude residia então na disciplina da escuta. Mas, nos nossos dias, quem aceita uma disciplina, qualquer que ela seja, ou quem está interessado em escutar? 

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Dar-se à luz

Marc Chagall - O nascimento (1910)

Sobre os animais seus irmãos, o homem tem uma vantagem raramente aproveitada. Como eles, o homem é dado à luz. Mas este ser dado à luz por uma mãe é apenas a condição de possibilidade para que cada um se dê uma e outra vez à luz. Dar-se à luz é a única tarefa verdadeiramente humana. Quem nasceu de mulher ainda não nasceu efectivamente. Há que aprender a nascer de si e a morrer para si, para voltar a nascer. Não se trata de renascer, mas de vir uma e outra vez a uma luz sempre nova, sempre virginal. Homem é aquele que empreende a infinita tarefa de dar-se à luz.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Poemas do Viandante (431)

Jean François Millet - Nu reclinado

431. Em cada quarto onde te encontro

Em cada quarto onde te encontro
arde uma flor de pedra e incenso.
A tua voz chega sussurrada,
súplica breve em noite de tempestade.

És um deus desalinhado, dizes,
enquanto os cabelos te cobrem os ombros,
trazendo ao corpo a silhueta da noite
tocada por uma fantasia de primavera.

Usamos inscritos no coração
os velhos temas do amor e da morte.
São nuvens brancas de silêncio,
um aroma a rosmaninho selvagem.

Com eles compomos sonhos e volúpias,
e acendemos a vela que guia o anjo,
vulto branco e flébil que no desvão
abre a janela que me leva para ti.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Duas árvores

Hercules Pieterszoon Seghers - Duas árvores (1.ª metade do séc. XVII)

A árvore não é apenas o símbolo da nossa condição actual, ao manifestar que somos seres que pairam entre a terra e o céu, seres cujas pulsões penetram no que há de mais sombrio na existência, mas cujas aspirações são guiadas pela luz que chega do céu, o qual não cessa nunca de nos convocar à elevação, apesar da terrível força da gravidade. As árvores - fundamentalmente quando surgem como um par - recordam-nos a nossa antiga condição mítica, aquela de onde fomos expulsos ao comer o fruto proibido. Olho o quadro de Seghers e reconheço de imediato a árvore da ciência do bem e do mal e a árvore da vida. E neste reconhecimento, o velho mito renova-se e continua vivo.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

O ser vazio

Saülo Mercader - Coupe et soleil (1986)

Fariseu cego! Limpa antes o interior do copo, para que o exterior também fique limpo. (Mateus, 23:26)

O copo tomado como metáfora do ser traz em si mais do que o mero jogo entre o interior e o exterior, jogo esse sublinhado no texto de Mateus. O hipócrita faz reluzir o exterior para ocultar a maldade que o habita no interior. A questão, porém, não é meramente moral. A metáfora do copo traz um outro ensinamento. O copo é um recipiente, o lugar em cujo interior algo deve descer. Também o ser dos homens - fariseus ou não - deve estar vazio - o que inclui a ausência do mal -  para que nele desça o espírito do bem e da verdade. A limpeza moral não é um fim em si, mas uma propedêutica à experiência essencial. A moral por si mesma é ainda um assunto de fariseus.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Pontos de acesso

Al Held - Acceso (1967)

Descobrir os pontos de acesso, aqueles que permitem o viandante continuar a viagem, não é um exercício que seja resolúvel pela sagacidade da razão. Encontrar os pontos de acesso exige uma abertura de espírito e um deixar-se levar pelo ritmo do caminho.

domingo, 25 de agosto de 2013

O rito da dança

Marc Chagall - Dance (1962-63)

Na dança, aquilo que retém olhar não é tanto a luta contra as leis da natureza, a suspensão da gravidade, mas a sua natureza ritual. Nela realiza-se um rito nupcial, uma antecipação da união dos corpos e fusão dos espíritos. Torna-se a dança, a cada momento, um símbolo arcaico daquilo que, no mistério de Eros, surge como injunção à fusão dos corpos e à dissolução de dois seres num único. A dança é a antecâmara de um mistério que está muito para além dos limites da razão.

sábado, 24 de agosto de 2013

Haikai do Viandante (155)

Roberto Domingo - Nocturno

Mar iluminado,
paisagem de sombra e trevas.
Um deus vai cansado.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Amor e narcisismo

Michelangelo Merisi da Caravaggio - Narciso (1599)

«Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?» Jesus disse lhe: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. (Mateus, 22: 36-39)

O mito de Narciso é, muitas vezes, explorado nas suas consequências: o apaixonar-se pela sua própria imagem e o subsequente definhamento e morte. Deixando de lado o facto de nos terem chegado várias versões do mesmo mito, sublinhem-se alguns aspectos centrais. Narciso apaixona-se pelo reflexo de si nas águas, mas não sabe que aquela imagem que contempla embevecido é a sua. Não está apaixonado por si mas por um reflexo, por aquilo que ele contempla sem saber o que realmente é. O seu investimento amoroso não é em si mas num outro, num que está próximo de si. O erro de Narciso está no desconhecimento da realidade e na contemplação de um mero reflexo, de uma ilusão. Ele não investe eroticamente em si mas no outro, mas num outro que não existe. O próximo, por quem Narciso se apaixona e aproxima, é uma ilusão fundada no desconhecimento de si e dos mecanismos da realidade.

Não terá o segundo mandamento dado por Cristo – Amarás o teu próximo como a ti mesmo – um fundamento narcísico? O amor ao próximo não tem como modelo o amor a mim mesmo? O texto de Mateus não esclarece como me devo amar a mim mesmo. Se eu devo amar a minha imagem reflectida nas águas da vida social ou se devo amar em mim uma outra coisa que não está explicitamente indicada. O texto citado tem, todavia, uma indicação. Diz-nos que o segundo mandamento é semelhante ao primeiro. Poder-se-á seguir duas linhas de interpretação. Numa primeira, dir-se-ia que devemos amar o próximo e a nós mesmos com todo o nosso coração, a nossa alma e a nossa mente. Mas aqui não poderíamos incorrer na ilusão de Narciso? Não poderíamos amar completa e totalmente o reflexo do outro e de nós mesmos? Para evitar esta linha de pensamento, podemos pensar a semelhança entre o primeiro e o segundo mandamento de uma outra maneira. O que eu amo no próximo como em mim mesmo é a Deus, que está presente no próximo como em mim. Não é o reflexo social do outro ou de mim que reclama o meu amor, mas esse totalmente Outro que está presente em cada um de nós. E, deste modo, recupero a primeira interpretação, a da completude do amor que devo ao próximo e a mim.

O enigma principal deste texto de Mateus, bem como de muitos outros textos neotestamentários, reside no amor. No mito de Narciso, embora não seja dada uma definição de amor, percebemos o que está em jogo. Quando se fala, no âmbito do Cristianismo, em amor (amor a Deus, ao próximo ou a mim mesmo), estamos a falar de quê? A palavra é usada e abusada, não há prédica que não fale no amor. Estamos a falar de um sentimento, de um delíquio afectivo, de uma acção da vontade, de uma inclinação do desejo? Aquilo que parece óbvio e é tomado como tal não deixa de ser o mais enigmático.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Poemas do Viandante (430)

Tintoretto (Jacopo Robusti) - La dama que descubre el pecho (1570)

430. O Estio passou por ti e sazonada

O Estio passou por ti e sazonada
entraste no tempo de outono.
O deus cobre-te ainda de glória
e secreta a luz desliza-te na pele.

Se a memória traz o antigo esplendor,
o segredo com que te abres
chama o aroma da plenitude
e a tranquila paixão da hora.

Lá fora, as folhas amarelecem
e entregam-se à volúpia da queda.
Abro o vinho que escondes no corpo
e a boca sorve-te até transbordar.