quarta-feira, 31 de julho de 2013

Suspender a gravidade

Caspar David Friedrich - Angels in Adoration (1826)

Nas explicações do senso comum irreligioso, a religião surge muitas vezes como o produto do medo perante o desconhecido ou, no melhor dos casos, como uma resposta ingénua aos mistérios do mundo e da vida. Não se quer, desse modo, perceber a dinâmica biológica da religião. Ela é - para além de outras coisas - uma luta contra as limitações da nossa natureza biológica, um protesto contra a humilhação que o espírito do homem sente perante o peso do corpo. No acto religioso - na oração, por exemplo - manifesta-se o desejo de suspender a gravidade, como se o homem respondesse a uma solicitação das alturas.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Poemas do Viandante (427)

Lluis Rigalt - Ruínas (1865)

427. Não sei o peso da ruína

Não sei o peso da ruína
sobre os ombros do mundo.
Não sei a cor do manto
com que os anjos se cobrem.

Transporto comigo a cegueira
e traço nas ruas letras de cal,
enquanto espero a loucura
que os dias me hão-de trazer.

Levanto a espada sobre o fogo
e aguardo a hora aprazada:
uma serpente ergue-se na luz
e o vento rodopia silencioso.

De sombra em sombra cavalgo,
perdido da pátria que achei.
Restam-me ruínas, anjos caídos,
a cal enlouquecido pela luz.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

A desmedida da fantasia

Alexandre de Riquer - Fantasia

A fantasia liga-se muitas vezes ao delírio da imaginação, à suspensão das reais condições de possibilidade da experiência humana, isto é, à anulação dos efeitos do espaço e do tempo. Nessa suspensão, o desejo entrega-se livre ao devaneio com os objectos que o solicitam e lhe dão intenção e conteúdo, objectos que também eles deixam de estar condicionados pelos limites espácio-temporais, como se a imaginação fantasiosa nos segredasse a existência de um mundo no qual os corpos, não deixando de ser corpos, se tornassem etéreos, livres e desmedidos.

domingo, 28 de julho de 2013

Águas estivais

Carlo Carra - Estio (1930)

No Verão, os corpos, subjugados pela densidade do calor, anseiam  a leveza do espírito. Tudo os incomoda, tornando insuportável cada passo dado no caminho. Ao mergulhar na água, porém, tudo se torna possível, como se a gravidade fosse perdoada e o corpo, agora puro e inocente espírito, se elevasse da terra e prosseguisse no caminho que ao alto da montanha conduz.

sábado, 27 de julho de 2013

Árvore sagrada

Antonio Muñoz Degrain - El arból sagrada

Na expressão árvore sagrada não devemos ver o sagrado como uma adjectivação extrínseca - que se junta por uma qualquer hierofania - à árvore. A experiência ancestral do homem é a de ver já em cada árvore uma manifestação do sagrado, um símbolo de algo que ultrapassa em muito a mera experiência empírica. Juntas, as árvores, formam a floresta, essa mesma que ecoa no verso de Baudelaire L'homme y passe à travers des forêts de symboles. 

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Sobre a cegueira

Karl Weschke - Blind man (1948)

Mais que patologia, a cegueira é condição humana. Por muita acuidade que possuam os olhos de um homem, é sempre muito maior o campo que se subtrai à sua visão do que aquele que, com olhar agudo e espírito penetrante, consegue abarcar. E isto torna risível quem se louva na sua inteligência ou na sabedoria que acumulou. Seríamos todos mais sábios se andássemos de bengala e tivéssemos, como guia, um cão.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O Verbo e o Jardim

Pierre Bonnard - O grande jardim (1898)

Um jardim não é apenas um lugar onde se cultivam plantas ornamentais ou um sítio dado à fruição humana pelos poderes públicos ou pelos haveres privados. É uma imagem que materializa no espaço e no tempo a nostalgia que já se exprimia na narrativa mítica do jardim do Éden, no Génesis bíblico. Do ponto de vista da ordem da existência em geral, podemos dizer que no princípio era o Verbo, mas do ponto de vista estritamente humano, contudo, será mais prudente dizer que no princípio era um Jardim. O  viandante perplexo, porém, pergunta se o Verbo e o Jardim não serão a mesma e única coisa.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Haikai do Viandante (152)

Pierre-Albert Marquet - Assouan, Morning

Divina manhã.
A água abre-se ao sol,
dele se faz irmã.

E com este singelo haikai, o blogger entra numas curtas férias até quinta-feira que vem, se tudo correr como o previsto. Os visitantes sempre podem contemplar o belíssimo quadro de Albert Marquet.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Arquitecto de labirintos

Virginia Lasheras - O Arquitecto (1993)

O viandante não é apenas aquele que caminha em direcção ao seu destino. O viandante sabe que tem um destino, mas não qual é. Ao caminhar, ele é o arquitecto do labirinto pelo qual passa, pois a viagem é o trânsito pelo labirinto. Em cada momento o viandante constrói uma nova passagem, e não sabe se ela leva a um beco sem saída ou se abre o caminho em direcção àquilo que o chama. Espera a graça da sagacidade e o talento do construtor para que, desprovido do fio de Ariadne, não tenha que voltar ao início do caminho.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Poemas Viandante (426)

Pablo Picasso - A vida (1903)

426. Um fio que se quebra e abra para a morte

Um fio que se quebra e abre para a morte,
o desejo impossível sobre a varanda,
o rumor de julho na planície incendiada.

A vida chega a arder nos dedos de cristal,
rodopia sob a fadiga do vento,
ri-se desfigurada pela ânsia perpétua.

O silêncio da criança nos braços da mulher,
a memória traçada de fronteiras e rios,
o animal que se inclina e pede água.

Trago no labirinto toda a vida que me foi dada,
olho-a aterrorizado pelo que anoiteceu,
e sento-me escutando o tropel do que há-de vir.

Ó a vida nua, pura, delicada e breve:
ébria, uma erva pende para a terra
e no céu um anjo voa no silêncio eterno.