domingo, 30 de junho de 2013

O olhar retrospectivo

René Magritte - El maestro de escuela (1954)

Disse-lhe ainda outro: «Eu vou seguir-te, Senhor, mas primeiro permite que me despeça da minha família.» Jesus respondeu-lhe: «Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado, não está apto para o Reino de Deus.» (Lucas 9:61-62)

Há dias, no contexto do Antigo Testamento e a propósito da mulher de Lot, abordou-se aqui a questão do olhar retrospectivo. Com estes versículos do evangelho de Lucas, mas também com os que os antecedem, retorna-se à punição do olhar para trás. A questão é introduzida pelo desejo de se despedir da família ou, noutras traduções, dos que que estão em sua casa. Esta indicação é preciosa, pois permite alargar o grau de compreensão  da resposta dada. Naquele que quer despedir-se da família ainda permanece um desejo do que é familiar, daquilo que pertence ao reino do habitual, à forma convencional de ser, de estar e de olhar o mundo. Não se trata de uma crítica à família, mas de tornar claro que a via proposta (o Reino de Deus) não está no hábito, não está naquilo que se tornou  familiar para a consciência. Ela não é uma convenção mas uma efectiva aventura.

Olhar para trás é o sinal de pertença a este mundo, que a sua imagem ainda move o desejo e o coração, que ainda não se está perante uma consciência pura e uma vontade liberta das seduções que o familiar traz consigo. O uso da metafórica agrícola - deitar a mão ao arado - é de uma grande precisão. Olhar para trás quando o arado sulca a terra implica o enviesamento, o sulco deixa de ser um recto caminho para passar a ser o fruto da distracção e do acaso. Quem olha para trás não vê aquilo que à frente chama por si. Naquele que diz que quer seguir o Senhor e, ao mesmo tempo, deseja olhar para trás, nesse, o coração ainda está dividido entre a segurança do familiar e a incerteza e a aventura de penetrar no não familiar, no inabitual. Todo o olhar retrospectivo é uma confissão de uma vontade que ainda não abriu mão daquilo que a seduz, que ainda não está pronta para o caminho.

sábado, 29 de junho de 2013

Preconceitos modernos

Albano Vitturi - Gli eremiti di Faida (1934)

O triunfo da modernidade sobre o modo de vida medieval manifestou-se também na substituição dos velhos preconceitos por novos. Assim como os medievais não compreendiam os seus preconceitos como preconceitos, também os modernos são incapazes de reconhecer, enquanto tal, os seus. Dois preconceitos tomaram conta da vida dos homens e quase destruíram a herança espiritual do Ocidente. 

O primeiro preconceito diz respeito ao desprezo que os modernos patenteiam à vida contemplativa. A modernidade é o triunfo do negócio e a imposição a todos os homens de uma vida activa, de onde a contemplação foi pura e simplesmente banida. Mesmo a vida académica, hipoteticamente herdeira da tradição filosófica grega, uma tradição contemplativa, se tornou em dura actividade, em negócio puro e simples. 

O preconceito contra a vida contemplativa acentua-se quando se trata da opção pela solidão. Aquele que se separa dos homens para se confrontar consigo e com o Absoluto tornou-se de tal maneira estranho, que os modernos, presos à acção e ao medo de estar sós, destruíram o desejo e a possibilidade de erguer eremitérios, onde os homens, libertos dos negócios do mundo, possam entregar-se à vida do espírito. Nada mais repelente do que os antigos conventos de contemplativos transformados em edifícios para turistas.

Não se compreende, porém, que o cerne da nossa tradição espiritual reside naquilo que a contemplação permitiu criar, naquilo que, em solidão, homens e mulheres puderam descobrir. A crise do Ocidente não é económica ou política, mas uma crise espiritual, uma crise que nasce do preconceito contra a contemplação e a vida de solidão, que todos os homens deveriam, em certos momentos da sua vida, aceder, confrontando-se consigo, com o seu destino e com aquilo que o Absoluto lhes propõe como caminho.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Poemas do Viandante (423)

Benvenuto Benvenuti - Frate foco (1925)

423. Descrevo a sintaxe do fogo sobre a terra

Descrevo a sintaxe do fogo sobre a terra
e espero a hora em que nasça
uma gramática subtil feita de faúlhas,
os frutos breves da amendoeira,
a velha servidão sob o peso da terra.

Atiro longe o dardo do amor
e ele perde-se enovelado nos ares,
rodopia sob a inclemência solar
e traceja nuvens de cinza no horizonte de água.

A minha casa é feita de pedra e colmo,
e o fogo arde diante da porta.
Sentado, olho as labaredas
e conto os anos inscritos nas velhas árvores,
os troncos fendidos, ramos decepados.

Os fotões iluminam-me a memória
e com as mãos livres desenho o delicado rosto,
soberbo, suave, quase sonoro,
com que um dia te prendeste nos meus dedos.

E tudo em mim canta no prodígio dessa imagem,
a velha maçã que perdeu Adão,
a guerra de Tróia e o cavalo desejado,
e todos aqueles que enlouqueceram junto ao oceano,
presos no fascínio das ondas ao rebentar.

Da pobre janela, oiço o galope do futuro,
chega com as chuvas de Novembro,
coberto de feridas e uma sombra no olhar.
Abre-se numa fortuita constelação de ervas pálidas

e traça um cavalo lívido de fogo
nas paredes exaustas e negras da casa:
relincha, empina-se e parte campo fora,
sem uma morfologia que o classifique
sem um fogo que lhe incendeie de terra o coração.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Da autoridade do autor

Albert Gleizes - Autoridade espiritual e poder temporal (1939-40)

Quando Jesus acabou de falar, a multidão ficou vivamente impressionada com os seus ensinamentos, porque Ele ensinava-os como quem possui autoridade e não como os doutores da Lei. (Mateus, 7:28-29)

Surge muitas vezes, na opinião publicada, o delicado problema da autoridade dos professores. Por norma, as respostas dadas são insípidas e falham o alvo. De onde provém a autoridade daquele que ensina, seja ou não professor? Os  versículos citados de Mateus são uma porta por onde podemos penetrar no mistério da autoridade daquele que ensina. O que impressiona a multidão no ensino de Cristo é a diferença que apresenta relativamente aos doutores da lei, aos escribas. No escriba encontramos um certo tipo de autoridade. Eles têm a autoridade de quem conhece a lei, porque a interpreta, e os livros sagrados. Numa sociedade teocrática, têm ainda uma autoridade legitimada pelo poder político (mesmo que este esteja, como era o caso, submetido aos representantes de Roma). No entanto, nem a autoridade proveniente do poder nem a fundada na erudição constituem uma verdadeira autoridade (sobre isto ver o post de ontem).

Se não é nos livros nem no poder, onde residirá a autoridade que sustenta o ensino de Cristo? A palavra grega usada e traduzida por autoridade (ἐξουσίαν) tem um amplo campo semântico. Ela conjuga a energia, a capacidade, a competência e a liberdade do sujeito que possui a autoridade e, ao mesmo tempo, o direito, o poder, o domínio e a força que objectivamente lhe é reconhecida (ver aqui). Em síntese, pode-se dizer que esta autoridade reside na liberdade do autor, na liberdade da autoria. Cristo era o autor da ordem do mundo que ele próprio anunciava e, por isso, as suas palavras tinham autoridade que, ao serem escutadas, logo era reconhecida. Elas, as Suas palavras, não vinham de um exercício hermenêutico sancionado pelos poderes político-religiosos e académicos, mas da própria essência daquele que fala. A fragilidade dos doutores la lei reside na distância que vai entre aqueles que interpretam racionalmente a lei e aqueles que, ao vivê-la e ao torná-la vida, se tornam os seus autores. A verdadeira e única autoridade é aquela que nasce da autoria.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Do uso das bibliotecas

Helena Vieira da Silva - Biblioteca (1953)

Numa história onde, por várias vezes, grandes bibliotecas foram queimadas, num país onde, devido à escassez, as bibliotecas foram elevadas à condição de templo sagrado (tão sagrado que muito nem lá entram), a biblioteca tornou-se uma metonímia da sabedoria. Aquele é uma biblioteca ambulante. Morreu uma verdadeira biblioteca. Estas expressões acabam por estabelecer uma ligação estreita entre a leitura de livros e a sabedoria. Mas ler livros tornar-nos-á sábios? Não houve, na história da humanidade, grandes leitores cujo comportamento foi insensato ou, mesmo, absolutamente perverso?

Não é a leitura de livros que nos torna sábios, mas uma certa disposição para a sabedoria que nos leva a encontrar nos livros um alimento dessa mesma sabedoria. Dito de outra maneira, a sabedoria não é a consequência de uma causa chamada leitura. Pelo contrário, a leitura é a consequência de uma certa disposição para a sabedoria. Só assim a leitura faz parte da viagem espiritual do homem. Caso contrário, mesmo que não tenha efeitos perversos em certas personalidades, ela não tem mais efeitos intelectuais do que o consumo de chocolates tem ao nível do corpo.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Haikai do Viandante (149)

Nikolay Dubovskoy - Calm (1890)

Ó pura quietude,
cais silenciosa e fria
sobre a vida rude.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

A vida e a morte

Ramón Pérez Carrió - Descida às entranhas da luz

Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1: 4-5)

Somos fascinados pela oposição entre luz e trevas. Um hábito ancestral leva-nos a ordenar o mundo em pares de opostos. Esse hábito é muito anterior ao texto de João. Este vai explorá-lo, estabelecendo duas relações entre luz e trevas. Em primeiro lugar, as trevas são o lugar onde a luz brilha intensamente (resplandece). Quanto maior a escuridão mais intenso é o brilho da luz. As trevas são o lugar da manifestação da luz. Em segundo lugar, as trevas não compreenderam a luz. Esta não compreensão deve ser lida, cumulativamente, como não entendimento (as trevas não entenderam a luz) e como não inclusão ou não abrangência (as trevas não incluíram a luz ou excluíram-na). A luz manifesta-se não apenas naquilo que não a entende como também no que a exclui, incapaz de a abranger.

Este jogo dialéctico é, em si mesmo, incompreensível. Contudo ele é antecedido por uma frase metafórica: a vida era luz dos homens. O que está em questão é muito mais que a tensão entre dois fenómenos ópticos (luz e trevas), ainda que tomados como metáforas da sabedoria e da insensatez. Se a luz surge como metáfora da vida, o leitor é levado a compreender, por analogia, as trevas como metáfora da morte. É na morte que a vida resplandece, mas é também a morte que não compreende a vida e a exclui. Este parece ser o núcleo central do mistério dos cristianismo, a afirmação de uma vida através da morte, de uma morte que a não compreende, que a exclui. Tudo está assente num paradoxo: a vida que se manifesta naquilo que a nega, que a exclui, mas que é, ao mesmo tempo o outro da vida, como se esta tivesse de descer ao coração da morte para de lá resgatar as entranhas da vida.

domingo, 23 de junho de 2013

O lugar da emoção

Ferdinand Hodler - Emoção (1894)

Encontrar o lugar da emoção será um momento essencial da viagem espiritual. Toda a emoção é uma alteração de uma certa ordem, uma desordenação. Se a razão nos traz uma ordenação do mundo e a desrazão a mais pura desordem, o essencial é encontrar na emoção o lugar onde ordem e desordem se encontram. A efectiva sabedoria joga-se não na razão mas na justa medida da emoção. A emoção deverá ser suficientemente viva para que faça cair a velha ordem do hábito e suficientemente moderada para que, evitando o caos das pulsões inconscientes e dos instintos, propulsione um novo passo para uma outra ordem do cosmos e do sujeito que caminha nesse cosmos.

sábado, 22 de junho de 2013

Poemas do Viandante (422)

Maxfield Parrish - Blue Fountain (1926)

422. A natureza sonha água e fontes

A natureza sonha água e fontes,
jardins de seda
nas margens bravias da floresta.

Um rumor lembra os primeiros dias
e em cada passo
abre-se a porta do tempo.

Rasgo o véu e as trevas dissipam-se
entre o fulgor dos teus olhos
e as mãos cobertas de terra.

Quando anoitece, as árvores sussurram
e trazem para a cidade
a cor que a vida arruinou.

Em cada fonte sonhada,
em cada Estio que chega,
um rio solitário enlouquece.

Olho a fonte no centro do jardim
e oiço as águas do rio
perdidas entre o céu e o mar.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

A suspensão da mediação


Há dias, durante uma missa para os jardineiros e pessoal de limpeza do Vaticano, o Papa Francisco pede que todos orem em silêncio, cada um pelo que o seu coração deseja (ver aqui). Francisco, que preside à celebração, levanta-se e vai sentar-se numa das últimas cadeiras. É assim que ele faz a sua oração. Este gesto acorda-se com a exigência dos próprios evangelhos, de o primeiro ser o último, ser o mais humilde dos servidores. Mas, no seu gesto, há mais alguma coisa. Há, em pleno ofício litúrgico, uma suspensão da mediação. O supremo mediador entre Deus e os homens, o sumo pontífice, torna-se o último dos homens. 

Olhamos e cada um está confrontado, no silêncio da sua consciência e na imagem dos seus olhos, com o Cristo crucificado. O Papa, em vez de ser a ponte e a sombra, deixa, por um instante, que os crentes se olhem na figura do Cristo. Não há a grandeza do pontífice para ocultar a miséria da cruz, não há a sombra do sacerdote para ofuscar a luz que se abate sobre os fiéis. Não há abandono dos crentes, pois o Papa está com eles, mas uma indicação precisa sobre a importância de cada um ser autónomo e confrontar-se, sem a mediação de uma outra consciência, com a sua crença e o seu destino. Este gesto, aparentemente tão trivial, parece anunciar uma reconciliação do catolicismo com a modernidade e a autonomia da consciência. Francisco não nega a mediação da tradição sacerdotal - seria um protestante -, mas suspende-a, para que a subjectividade de cada um se veja no espelho da cruz.