segunda-feira, 10 de junho de 2013

Poemas do Viandante (420)

Díaz Olano - Desnudo (1895)

420. Deixo a mão escorregar no teu dorso

Deixo a mão escorregar no teu dorso
e sinto a pele sequiosa de água,
o rumor  do desejo na memória do mar,
as areias brancas batidas pelo vento,
o antecipado prazer de cada sensação.

Fosse a tua pele azul e os seios falassem.
fosse a tua voz sombra e a boca calasse.
Fosse a tua mão silêncio e o sexo cantasse.
O dia viria com o seu império de luz
e abriria para a noite a cortina do amor.

Deusa nocturna tragada de memórias,
concha aberta onde repouso,
serva fascinada pela voz do senhor.
Vem! Escurece em mim as trevas
e ateia um fogo no buraco negro da solidão.

Consome-me célula a célula,
rasga-me a carne e dilacera-me o peito,
deixa arder o sexo na água da minha boca.
Sonâmbulo, desenho-te o corpo
na poalha viva da memória fracturada,

e escrevo nessas ancas o casto segredo
dos dedos que se tocam e ressoam,
do eco do teu nome na fímbria do coração,
do lençol branco onde te desejo:
Pura, intocada, meretriz de sangue incendiada.

domingo, 9 de junho de 2013

A alegria do regresso

Giorgio de Chirico - A alegria do regresso (1915)

A questão do regresso tem, na tradição ocidental, duas figurações centrais. Na cultura clássica grega, o regresso - e as alegrias concomitantes - tem o seu símbolo no retorno de Ulisses à pátria, à ilha de Ítaca, que abandonou para seguir, com o exército dos helenos, para Tróia. Na vertente judaico-cristã, o regresso é pensado no retorno do segundo Adão, Jesus Cristo, ao Pai ou, para utilizar a simbólica do Antigo Testamento, ao paraíso, de onde o primeiro Adão tinha, angustiadamente, partido.

A alegria do regresso deve ser compreendida a partir de dois tópicos. Por um lado, a alegria de voltar chez soi, com o prazer de ser reconhecido e o prazer de reconhecer o lugar a que se pertence. Não se trata apenas de uma questão territorial, mas de um voltar àquilo que se é. Ulisses retorna à sua função de Rei, o segundo Adão restaura a natureza divina do homem. Esta alegria central, pois tem uma natureza ontológica, está escorada numa outra alegria, a alegria de ter superado as provações, sejam as da Guerra de Tróia e aquelas que a atribulada viagem de regresso trouxeram a Ulisses, sejam as colocadas pelo processo crucificação, morte e ressurreição do Cristo. 

A alegria do regresso não se trata do júbilo por um retorno ao lugar de onde se partiu, mas da alegria de uma nova condição que é, ao mesmo tempo, restauradora de uma condição perdida e uma condição absolutamente nova. Aquele que regressa retorna ao que foi tornando-se em algo de absolutamente novo.

sábado, 8 de junho de 2013

A angústia da partida

Giorgio de Chirico - A angústia da partida (1913-4)

O quadro de Giorgio Chirico representa uma reflexão pictórica sobre uma das experiências fundamentais da humanidade. O título junta as ideias de angústia e de partida. O que torna uma partida angustiante? O desconhecido, a incerteza, a coacção que torna necessária essa partida. Na tradição ocidental, qual é a partida simbólica que condensa todas as partidas angustiantes? A primeira partida é a de Adão e Eva, aquando da sua expulsão do paraíso. Nesse momento simbólico trazido pelo mito inscrito no Génesis, encontramos todos os elementos necessários para perceber a angústia da partida: a coacção que foi imposta ao par prevaricador, o desconhecido para onde se dirigem, a incerteza sobre a sua sorte na viagem imposta. O sair do paraíso, ou da pátria, ou do lar é sempre um momento angustiante onde o espírito vacila. É também o momento em que o homem, abandonando o estádio ingénuo da existência, toma consciência de si e do seu existir, é a hora em que le se torna viandante. E aqui percebe-se um segundo motivo de angústia para aquele que parte. Será que se perderá no caminho e se entregará à pura errância ou terá o talento para a alegria do regresso?

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O corpo que dança

Henri Matisse - A dança (1909-10)

Talvez tenha sido Paul Ricoeur que tenha dito que a dança é uma luta contra a gravidade. Ao dançar, o corpo fluidifica-se, abole alguns limites, redefine as fronteiras do possível. Quanto mais exigente tecnicamente for um estilo de dança maior a ambição que nele se esconde. Que ambiciona um corpo ao dançar? Tornar-se um corpo mais  eficiente e com maior capacidade performativa? Tornar-se numa aparência arrebatadora para o espectador? Tornar-se fonte inesgotável de um prazer subjectivo? Tudo isso pode ser verdade, mas é secundário. Ricoeur, se não me falha a memória, tem toda a razão, o corpo pretende suspender o efeito da gravidade. O que significa, porém, esse desejo? Significa simplesmente que o corpo aspira a não ser corpo. A gravidade faz parte da corporalidade. A nossa experiência do corpo é concomitante ao nosso sentimento de subjugação à gravidade. Quando o corpo dança, quando responde ao anseio de suspender a gravidade, ele responde ao seu mais secreto desígnio. Ele pretende tornar-se puro espírito. Quando os corpos dançam é o espírito que neles se esconde que se manifesta. A dança é sempre uma hierofania.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Haikai do Viandante (146)

José de Togores - Afinidades (1930)

Traços que se querem,
manchas de cor, velhos corpos:
virão se vierem.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Idolatria e emancipação

Odilon Redon - O Ídolo (1886)

Um dos elementos centrais do Antigo Testamento é o combate contra a idolatria. O Deus de Israel, na sua invisibilidade e irrepresentabilidade, exigia um esforço intelectual e um mergulho na fé, para os quais a população, muitas vezes, se mostrava incapaz. A visibilidade do ídolo e a apreensão intuitiva de uma figura tornavam, na economia da praxis religiosa, a idolatria mais acessível ao homem comum. Impossível de figurar e com uma elevada exigência moral, o Deus de Israel surgia ao povo eleito como qualquer coisa contra-intuitiva, quase como uma monstrusidade abstracta.

Afastados há muito da velha discussão entre os defensores da adoração de ídolos ou dos adoradores do Deus verdadeiro, não damos conta de que a idolatria está sempre pronta a renascer. Hoje não surge no campo religioso mas na vida profana, tornando-a, muitas vezes, ritualística e religiosa. As técnicas de marketing e de comunicação acabam por criar condições para que a nossa relação com os objectos, as pessoas e connosco se torne idolátrica. Não interessa saber quanto tempo dura o culto de um certo ídolo (por exemplo, do iPad ou do iPhone, do Cristiano Ronaldo, etc.), pois a morte de um ídolo significa apenas a sua substituição. 

A relação idolátrica - a fetichização de partes da realidade - é um dos processos mais eficazes de alienação contemporânea. Alienação no sentido exacto em que nos tornamos estranhos a nós próprios. É deste estranhamento a si mesmo que nascem outras alienações, nomeadamente as sociais, onde o indivíduo, seduzido pelo culto idolátrico, é incapaz de perceber as relações reais em que vive e olhar, fria e objectivamente, para o seu lugar na sociedade. Mas, é preciso sublinhar com veemência, a fonte de todas as alienações está no estranhamento relativamente à nossa dimensão espiritual, à negação do espírito, ao esquecimento que não somo apenas pura materialidade. Toda a emancipação espiritual é uma luta contra a idolatria, seja qual for a forma que ela tome, pois esta é a grande cilada onde o espírito incauto sucumbe.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Poemas do Viandante (419)

William Bouguereau - Evening mood (1882)

419. A servidão gloriosa de um corpo despido

A servidão gloriosa de um corpo despido,
o dissimulado átrio que te espera,
o fôlego suspenso, trémulo, ansioso...
Submisso ao relâmpago, componho um hino,
traço uma rota de âmbar e flores,
suspendo a visão na cal do olhar.

Crua e luminosa, cai a tarde,
e os teus ombros esperam quietos
o murmúrio de um barco rasgando o mar.
Uma cotovia incendeia o céu
e na boca ardem equinócios de veludo
sobre a palha queimada do amor.

Deito-me sobre o corpo inacessível
e espero o lento rumor de uma voz,
a secreta e sagrada semente,
a pétala marítima que se desprende,
ave de seda ateada:
fogo que canta, luz de sombra, alma ferida.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Alegorias e parábolas

André Masson- Alegoria (1935)

Platão recorre a alegorias, Cristo a parábolas. Tem-se a sensação que a linguagem comum, ou mesmo a linguagem unívoca utilizada na ciência, é impotente para exprimir a verdade. Seria um problema da linguagem e dos seus limites que conduziria à necessidade do uso deste tipo de figuras linguísticas. Pode haver, todavia, uma outra abordagem da questão. Podemos pensar que a forma como concebemos a realidade é já ela alegórica, que as nossas representações da realidade são verdadeiras parábolas. Por que motivo se usará, então, as alegorias e as parábolas se tudo o que concebemos como realidade é já alegoria e parábola? 

Se pensarmos a alegoria e a parábola não como revelação de uma verdade mas como a criação de uma tensão, poder-se-á encontrar uma chave para o problema. O que está e causa é criar, através da tensão que as alegorias e as parábolas ditas ou escritas criam ao confrontarem as alegorias e parábolas com que representamos a realidade, um espaço vazio onde o espírito possa, em liberdade, mergulhar e encontrar um caminho para a verdade. A verdade não está nem na representação da realidade nem oculta na alegoria e na parábola, mas no vazio - onde a linguagem está suspensa assim como a representação do real - que o choque cria para que o espírito nele mergulhe.

domingo, 2 de junho de 2013

Compor mundos

Wassily Kandinsky - Composição n.º 5 (1911)

Estamos, desde que nascemos, demasiado treinados para vermos em nós e naquilo que nos rodeia um mundo ordenado. Isso é de tal maneira assim que não suspeitamos que apenas acedemos a uma composição de elementos heteróclitos, acidentais e, muitas vezes, fantasmagóricos. A educação que os neonatos recebem desde o ventre materno visa treinar o olhar e o modo de estar na vida para essa organização, de tal maneira que, com o decorrer do tempo, acreditamos que as coisas são tal e qual nos aparecem e que a realidade é aquilo que aprendemos a ver e que o único caminho de vida é o que nos foi ensinado (com uma ou outra alteração de percurso, claro).

O primeiro passo do viandante talvez seja descobrir que a forma como compreende o mundo é uma composição que lhe foi transmitida pela educação, mas uma composição entre outras possíveis, uma composição útil mas que em si não tem outra verdade que não a utilidade quotidiana. A via, a partir dessa compreensão, torna-se, então, um caminho de descomposição e de recomposição, de um desfazer de mundos para os refazer, nessa experiência que nos afasta deste mundo que não é o nosso e nos conduz, se não nos perdermos na errância, à pátria perdida.

sábado, 1 de junho de 2013

O sintoma melancólico

Edvard Munch - Melancolia (1894-5)

No processo de transformação da vida em patologia, podemos compreender a melancolia como um estado depressivo ligado à sensação de impotência e ao desgosto perante a vida, algo que pertencerá ao foro psiquiátrico. Podemos, por outro lado, questionarmo-nos se a melancolia - aquela que, uma vez ou outra, se abate sobre qualquer um - não será sintoma de uma perda ontológica, como se viver fosse um processo de desrealização e de diminuição do nosso próprio ser. A melancolia antes de ser uma patologia é o sintoma de uma falta, de uma perda essencial. Representa um aviso de que aquele que está em viagem perdeu o caminho e corre o risco de soçobrar na mais pura errância.