quarta-feira, 1 de maio de 2013

Uma lúgubre realidade

Leon Frédéric - A era do trabalhador (1895-97)

Como será possível denominar o quadro com o estranho título de A era do trabalhador? O que vemos, em primeiro plano, são mulheres e crianças e não encontramos vestígio de trabalho nem figuras que possam preencher o conceito de trabalhador. O que nos diz então este quadro sobre a era do trabalhador? Diz-nos que a actividade do homem se reduziu à sua condição natural, à pura corporalidade, à mera estratégia da sobrevivência da espécie, à preocupação com a reprodução da vida. A era do trabalhador é o tempo histórico em que o homem, despido da espiritualidade, se entrega plenamente aos afazeres da reprodução e da sobrevivência. A era do trabalhador é a confissão de uma dificuldade pela qual a espécie passa. Todas as suas forças se concentram nas dinâmicas biológicas ligadas ao corpo. A era do trabalhador, contrariamente ao que se propaga nas diversas retóricas sociais, não é a do reconhecimento da dignidade do trabalho e do trabalhador, mas o tempo em que a actividade do homem perdeu o sentido espiritual que dava dignidade tanto ao trabalho como àquele que o executava. A luminosidade do quadro de Leon Frédéric oculta, na beleza dos corpos e na esperança trazidas por novas vidas, a lúgubre realidade do homem moderno, a sua oclusão na pura corporalidade, o esquecimento daquilo que faz dele mais do que um animal.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Amor entre ruínas

Edward Burne Jones - Amor entre ruínas (1894)

Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça. (Paulo, Romanos 5. 20)

Se olharmos o quadro de Burne Jones, numa primeira impressão, percebemos as ruínas como um cenário onde o amor é representado. O par ali representado parece exterior ao lugar. Mas, parafraseando Paulo de Tarso, podemos dizer que, onde abundam as ruínas, superabunda o amor. A desolação das ruínas e a consolação amorosa estão intimamente ligadas, como se o amor fosse sempre o triunfo sobre a ruína, sobre a desolação trazida pelo tempo, fosse sempre uma promessa de eternidade nascida no centro da destruição que o tempo traz consigo.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Poemas do Viandante (412)

Vincent Van Gogh - Olive Trees (1889)

412. Oliveiras, livros abertos na planície

Oliveiras, livros abertos na planície,
memória vinda de um tempo esquecido,
rasto silente de quem passou
e deixou um sinal sobre a terra,
o gesto com que se abre a mão
e espera que alguém receba a dádiva.

Toco-te nas folhas e o corpo canta,
sente o cheiro de terra forte e rasgada,
o trabalho das gerações preso no fruto,
a esperança da estirpe que cria raízes
e inscreve na terra uma seara
de troncos rudes e cobertos de musgo.

Velhas árvores salvas da cilada,
o tempo ardiloso ronda-vos cheio de luz,
prestes a tomar-vos os campos
e fazer de vós ramos onde arde o futuro,
promessa de uma terra vazia,
a canção do outono silenciada no lagar.

domingo, 28 de abril de 2013

Do sofrimento e da desolação

Albert Bloch - The Grieving Women (1950-57)

O utilitarismo tem como ponto fundamental a maximização do prazer e a minimização da dor. Este princípio hedonista aplica-se ao indivíduo mas também à sociedade. Em Stuart Mill, por exemplo, o indivíduo deve aprender a adequar a sua felicidade à felicidade do grupo. Estas teorias, bem como as materialistas, esquecem demasiado depressa a estranha ligação que há entre prazer e dor ou entre felicidade e desolação. Isto era muito claro para os pensadores gregos, mas a deriva subjectivista trazida pela modernidade acabou por criar um mundo onde a infelicidade, a dor, o sofrimento e a desolação - apesar da sua presença ominosa - não são dignos de ser considerados nem de ser vistos. O triunfo do sujeito sobre a dúvida em Descartes transforma-se na ideologia da felicidade e do apagamento da dor. O próprio cristianismo, fundado no sofrimento e morte de Cristo, foi sendo adocicado - por exemplo, pela retórica vazia do amor (não é que o amor seja coisa vazia, mas o modo como se fala dele é-o muitas vezes) - de forma a não incomodar as boas consciências que sob ele possam florescer. Não se trata de fazer a apologia do sofrimento. Trata-se de não o negar e de perceber que ele faz parte da viagem, pois confronta-nos radicalmente com a nossa natureza frágil, finita e falível. Também ele, porventura de maneira mais acentuada do que a felicidade e o prazer, nos ensina alguma coisa sobre a realidade e a autêntica natureza daquilo que somos.

sábado, 27 de abril de 2013

O silêncio e o nada

Odilon Redon - O silêncio

O silêncio não diz nada (rien), talvez porque é o nada (néant) que «diz» o silêncio. Compreendo que o nada (néant) é silencioso e que apenas podemos perceber o nada (néant) no silêncio. (Raimon Panikar, Mystique plénitude de Vie, p. 162

Há no mundo de hoje uma enorme poluição sonora. Não há lugar algum para onde possamos ir sem que o ruído nos invade. O pior, porém, são as palavras que nunca se calam dentro de nós. Esta poluição é o sintoma de um medo profundamente enraizado. Medo de quê? Medo de enfrentar esse nada que fala no silêncio, medo de se abrir para ele, medo de nos esvaziarmos para que ele seja nada em nós. O silêncio é a abertura para além do domínio das imagens sonoras, para além da multiplicidade das línguas e da pluralidade das palavras. No silêncio, escutamos, vazios, o Logos, esse nada anterior a todos os seres, esse verbo anterior a todos os sons. E isso aterroriza-nos, como o silêncio dos espaços infinitos já aterrorizava Pascal.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Haikai do Viandante (140)

Francesco Guardi - Capriccio of a Harbor (1760-70)

Um porto ensombrado
acolhe barcos e homens.
Zarpam lado a lado.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

De crepúsculo em crepúsculo

Pierre Bonnard - Crepúsculo (1892)

O crepúsculo não é apenas a claridade que permanece depois do pôr-do-sol ou que antece a alvorada. Por analogia, crepúsculo designa a condição do homem. O homem possui uma consciência crepuscular. Isto significa que ela não é uma consciência obscura ou absolutamente tenebrosa. Mas significa também que a luz da sua consciência está longe, muito longe ainda, da mais pura luminosidade. O grande equívoco do Iluminismo foi pensar que, com o predomínio da razão, o homem transitava de uma consciência crepuscular para uma consciência luminosa. Essa não é, contudo, a natureza do homem na Terra. Enquanto envolto na vida deste mundo, o homem não progride das trevas para a luz, mas desloca-se, infinitamente, de crepúsculo em crepúsculo.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Poemas do Viandante (411)


411. A tília perdida no caminho

A tília perdida no caminho
abre-se solitária e austera ao viandante.
Promessa de floresta nos campos,
as folhas tintas de sombra,
luz da tarde a despontar ao longe.

Sou um velho animal ferido
e sob os teus ramos contei os dias,
tracei mapas de urze e abandono,
esperando, transfigurado, um sopro
que tocasse no íntimo da folhagem.

O silêncio de Deus caiu sobre ti
e, se um relâmpago cruzava os céus,
era apenas o eterno desamparo
de uma nuvem que se acolhia
no húmido regaço de outra.

Olho os teus ramos tocados de vida
e oiço o cântico do anjos.
Palavras feridas cintilam-te nas raízes
e rasgam um caminho de solidão.
Nele, tranquilo, aguardo por ti.

terça-feira, 23 de abril de 2013

O combate enigmático

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

Não há combate mais enigmático do que aquele que alguém trava consigo mesmo. Não quer ele melhorar e ultrapassar-se, ser outro e ter novas virtudes e reconhecidos méritos? Onde reside o enigma? Assim pergunta a pessoa sensata, tão habituada a reduzir tudo à dimensão da sua sensatez. Mas o enigma não se oferece aos que persistem na sensatez. Aquele que combate o enigmático combate consigo mesmo está preso numa névoa obscura, a névoa da sensatez. É dela que ele se afasta combatendo, mas não sabe ainda que o enigma do combate reside na sua inutilidade. Se o véu, um dia e inesperadamente, se rasgar, descobrirá que não lhe resta aceitar-se naquilo que é. Nessa hora, a insensatez triunfou e ele está pronto para o caminho da sabedoria.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

O medo e a ameaça

Juan Genovés Candel - Amenaza (1969)

Talvez o grande inimigo da vida do espírito não seja o mundo e as suas seduções mas o medo. A ideia de se abandonar ao vento do espírito, de abrir mão de si e das suas seguranças, pode gerar - e gera, certamente - um sentimento de ameaça, de estar na vida desprotegido e entrega ao cuidado de algo que não se controla. Abdicar da vontade própria, pôr de lado as ilusões que constituem o cerne da identidade é o contrário da inclinação natural do homem. A sedução do mundo é apenas um analgésico e um tranquilizante perante a ameaça da verdadeira liberdade.