quarta-feira, 10 de abril de 2013

Soneto do Viandante (23)

Gustave Courbet - Donna con l’onda (1868)

23. Não basta que detenhas entre mãos

Não basta que detenhas entre mãos
A promessa esquecida pelo tempo.
Não basta que me encantes pela noite
Com o sorriso pálido de outrora.

Deixa que o vento cante sobre a pele
E os seios sejam água nesta boca.
Rio puro e desmedido, rio sonhado
Quando o corpo partia à desfilada,

Égua branca ferida pelo amor,
Animal sem infância nem destino.
Quero cada segredo do teu ventre.

Quero-te viva e nua, quero-te sóbria
E pura, pelo ócio descoberta,
Relâmpago e luz, fogo sem cinza.

terça-feira, 9 de abril de 2013

O espírito e a história

Maurice Denis - Paradise (1912)

Na sequência de um post anterior, O horror da história, retorna-se à questão da história e ao seu cruzamento com experiência espiritual da humanidade. Os tempos modernos substituíram a ideia de um progresso histórico, de carácter providencial, em direcção à Parusia, a segundo vinda do Cristo, e ao Juízo Final por uma história puramente profana vista como progresso material e moral da humanidade. Em Kant, a humanidade europeia encontrou o seu pensador do progresso moral e no Conde de Saint-Simon descobriu o seu profeta da técnica. A religião cristã, já dividida pela Reforma protestante, vai deixar de ocupar a preeminência que tivera no espaço público e tornar-se um assunto do foro subjectivo dos indivíduos, agora cada vez mais atomizados. Esta subjectivação do espírito do cristianismo teve uma dupla consequência. A perda de uma compreensão global do sentido da espiritualidade, em primeiro lugar. Depois, e como corolário, a transformação da religião em mera moralidade e ritualismo, ou a sua negação, nas formas da indiferença, do agnosticismo e do ateísmo, muitas vezes organizado de forma militante e, nos últimos tempos, adquirindo uma espécie de tonalidade religiosa invertida.

A experiência da humanidade europeia, e por arrastamento da humanidade em geral, do século XX veio tornar patente os limites na crença do progresso moral da humanidade. A perda de vitalidade espiritual ocorrida nos séculos XVIII e XIX abriu as portas para as terríveis experiências totalitárias do século XX e para duas guerras mundiais. A grande experiência que a humanidade europeia, e com ela, mais uma vez, toda a humanidade, começa a fazer neste início do século XXI - uma experiência que talvez tenha começado no outro lado do Atlântico - é que as esperanças depositadas no progresso técnico-científico se estão a mostrar infundadas. O desenvolvimento do conhecimento científico e as revoluções tecnológicas, apesar dos benefícios que trazem com elas, são fontes indescritíveis de dor e de desespero. No cerne das nossas sociedades, a racionalidade tecnocientífica mostra-se impotente para gerar sociedades equilibradas e de bem-estar. Pelo contrário, apesar de alguns momentos onde as sociedades parecem querer encontrar uma forma justa de distribuição dos bens resultantes da ciência e da indústria humanas, logo se sucedem períodos de graves crises, onde o desespero cresce e a injustiça alastra. O paraíso terrestre que a modernidade, sob a ideia de progresso moral e material, prometera aos homens mostra-se, a maioria das vezes, como um verdadeiro inferno para milhões e milhões de pessoas.

Estas constatações não invalidam a bondade de uma educação virada para o progresso da moralidade nem o valor da ciência e da técnica. Mostram apenas os seus limites, os quais são muito mais profundos do que aquilo que o optimismo séculos XVIII e XIX pensou. A dolorosa descoberta que se está a fazer é que a evacuação da religião, e fundamentalmente da espiritualidade cristã, do espaço público, o seu exílio no foro subjectivo, aniquilou um espaço crítico das ilusões mundanas do homem. Destruiu também uma fonte de inspiração para a procura da verdade e do bem. As sociedades ocidentais, e por arrastamento parte das outras, passaram por um momento onde eram animadas por forças meramente mecânicas, que tiveram a sua expressão máxima nas sociedades fordistas e tayloristas do século XX, para chegarem a sociedade caóticas, onde cresce a fragilidade da generalidade das pessoas, ao mesmo tempo que pequenos grupos as submetem ao seu arbítrio e à tirania dos seus desejos, apresentados como interesses legalmente defendidos. É neste caos, já bem visível na Europa do Sul mas que em breve atingirá o centro e o norte, que se deve recolocar a questão da religião e da espiritualidade, como as forças vivas que poderão trazer um novo princípio ordenador às existências individuais e à vida das sociedades. Não uma praxis religiosa vinda da Idade Média ou dos tempos da moderna Inquisição, mas um reinvenção do cristianismo eterno e da eterna busca espiritual da humanidade. É preciso um espaço extra-mundano para olhar criticamente o mundo e as nossas ilusões sobre ele, para descobrirmos modos de vida alternativos ao caos em que nos estamos a precipitar.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Haikai do Viandante (136)

Salvador Dali - El camino de Port Lligat con vista sobre el cabo de Creus (1922-23)

Caminho quieto,
pelos campos perdido,
sob um céu secreto.

domingo, 7 de abril de 2013

Poemas do Viandante (408)

Franz Marc - Three Cats (1913)

408. O silencioso gato da noite ronrona

O silencioso gato da noite ronrona
sob o vento frio e lunar.
Espreguiça-se e tece um rumor de sedas
no tapete branco da rua.

Pobre profeta é o gato perdido no estio,
uma saliência sussurrada que anuncia
a alcateia no silêncio da floresta,
no ardor inquieto das intempéries.

Majestade altiva, o gato contempla
o sossego do firmamento e as estrelas exaustas,
olha a razão da vida na margem do rio,
que no seu olhar se abre em cascatas.

sábado, 6 de abril de 2013

O horror da história

Adam & Christ Composição de duas pintuas de Hans Bauldung Grien ("Adam" e "Crucifixion") (ver aqui)

A reorientação de toda a vida humana numa direcção que não é imediatamente perceptível à inteligência natural do homem é o trabalho característico do Cristo, segundo Adão. É a reparação do mal causado à raça humana. O segundo Adão chega, e encontra o homem na desordem mais profunda, no caos e na desintegração moral onde o mergulharam os pecados do primeiro Adão e de todos os nossos antepassados. O Cristo descobre Adão, a raça humana, como a ovelha perdida que Ele reconduz para via que ela seguia antes de se ter afastado da verdade. (Thomas Merton, Le Nouvel Homme)

Sem esta relação entre Adão e Cristo, o segundo Adão, todo o cristianismo é incompreensível. Adão é a própria humanidade, a humanidade que se afastou da verdade e se perdeu no caminho. As palavras usadas por Merton para descrever a situação existencial do homem são esclarecedoras: desordem, caos, desintegração. Mesmo para aqueles que o símbolo da queda nada significa, a história dos homens é a prova evidente da situação existencial em que a humanidade está mergulhada. Toda a nossa história, e também as fases anteriores da existência humana, são marcadas por esses três conceitos. A desintegração moral, a desordem social e o caos existencial são os verdadeiros conteúdos da história, aos quais o homem vai tentando opor os seus débeis esforços.

Percebido a partir deste ponto de vista, o cristianismo é uma resposta ao horror da história, a tudo o que de inqualificável o homem fez e faz ao seu semelhante e a tudo o que o rodeia. Só por isto, o cristianismo é um acontecimento decisivo nessa mesma história. Decisivo não porque seja mais um dos eventos que constroem o horror, mas porque abre uma brecha na muralha de horrores que nos circunda. Se o primeiro Adão significa a humanidade que se afasta da verdade e, por isso, vive na desintegração, na desordem e no caos, Cristo, o segundo Adão, significará uma humanidade reconciliada com a verdade e que encontra o caminho da integração, da ordem e do cosmos. O judaísmo tinha e tem a vinda do Messias como expectativa a realizar no futuro. O cristianismo mostra que Ele já se encontra aqui, que a cada momento nós podemos optar pelo velho Adão ou pelo novo Adão. A vinda de Cristo significa que a liberdade do homem foi restaurada e que, certamente com o auxílio da graça, podemos optar pela verdade.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Haikai do Viandante (135)

Eugène Delacroix- La Mer vue des hauts de Dieppe (1852)

Súbita saudade
que ao ver as águas do mar
da terra me invade.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Sonetos do Viandante (22)

Dante Gabriel Rossetti - El encuentro de Dante y Beatriz en el Paraíso (1852)

22. Este impulso medido pela sombra

Este impulso medido pela sombra,
Esta flor no sossego do jardim,
Esta chuva que cai pela penumbra,
Este tédio sem mácula ou mágoa.

Silenciosos os sinos da cidade
Repicam sobre a tarde que se esvai.
Anunciam as palavras com que a noite
Se inscreve no portal do paraíso.

Eis a sombra impulsiva que se rasga
E abre neste jardim de luz solar.
Eis a penumbra suja, tão radiosa,

Traçando  imaculada a nova mágoa.
Eis o portal da noite que ressoa
Como um anjo no velho paraíso.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Serenidade

Alphonse Osbert - Serenidade (1901)

Se interrogarmos o dicionário sobre o sentido do termo serenidade, ele, como é normal num qualquer dicionário, envia-nos para uma resposta sempre decepcionante. Serenidade é a qualidade ou o estado de estar sereno. Sereno, por seu turno, é um adjectivo que qualifica algo ou alguém como estando calmo, sossegado, tranquilo, ameno, feliz. Perante tão frugal explicação do significado de serenidade, podemos perguntar como foi possível que Martin Heidegger, a dado momento do desenvolvimento do seu percurso filosófico, tivesse posto a serenidade (Gelassenheit) como a essência do pensamento. 

A essência de uma coisa é aquilo que, nessa coisa, faz com que ela seja o que é e não seja outra coisa qualquer. Isto significa que o pensamento é pensamento porque ele é a emanação da serenidade. Só a partir do estado de serenidade podemos pensar. Na formulação heideggeriana há, porém, qualquer coisa de perturbante. O que desencadeia o pensamento não é a dúvida ou o espanto, sintomas de inquietação e desassossego, mas o seu contrário.

A explicação desta posição reside em Heidegger ter abandonado a ideia de um pensamento representativo. Não é já a preocupação com a determinação de uma representação da realidade que se ajuste a esta mesma realidade, mas antes a serenidade de quem escuta o ser porque lhe pertence. Em vez de um pensamento representativo, fundado em conceitos abstractos que procuram a adequar-se ao real, temos um pensamento que medita a partir da escuta daquilo que é.

É nesta meditação que a filosofia se aproxima da poesia e constituem ambas um exercício de escuta e de atenção ao ser. Para escutarmos o rumor do ser, para estarmos atentos à epifania do ser, é necessário que deixemos para trás a inquietação, o desassossego, a perturbação mundana. A serenidade é, desse modo, a condição de possibilidade de toda a verdadeira meditação, seja ela filosófica ou poética. É na serenidade que a meditação filosófica ascende ao estatuto de oração, de uma oração de graças pelo estar na existência e pela escuta do rumor misterioso do ser, que está muito para além das nossas representações da realidade.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Bavardage

Federico Zandomeneghi - Bavardage

Talvez o maior perigo para o espírito seja a bavardage. A tagarelice infinita toma conta da alma e apodera-se do espírito, derramando as suas seduções no sentimento e na vontade. A bavardage é o sintoma de uma impotência, a impotência de nos calarmos, de fazer imperar o silêncio interior. Não há bavardage mais fútil do que aquela que se passa em nós, quando estamos calados. A barvardage não precisa de duas poessoas. Basta uma, basta que nos entreguemos à corrente da consciência e deixemos que as nossas associações criem um universo paralelo, tecido de palavras e imagens, um universo onde a desatenção àquilo que é se torna a característica central. Há quem pense que aqueles que silenciosamente se entregam aos seus pensamentos são pessoas muito espirituais. Um puro equívoco. São apenas pessoas que se distraem do essencial entregues a um universo onde, narcisicamente, tagarelam consigo mesmas, são pessoas em que o ruído e a poluição sonora passou de fora para dentro.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Haikai do viandante (134)

Karl Friedrich Schinkel - The Garden of Sarastro by Moonlight (1815)

Sagrado jardim
onde a lua revela a noite
que acordou em mim.