sábado, 23 de fevereiro de 2013

A restauração da fraternidade

Marc Chagall - Caim e Abel (1911)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste.» (Mateus 5,43-48) [Comentário de Policarpo de Esmirna aqui]

Como em outros textos, manifesta-se neste uma vontade deliberada de corte com uma tradição. Esta tradição remete para um longo hábito social fundado na reciprocidade, que ordena amar o próximo e odiar o inimigo. O que se descobre não é a irrelevância da reciprocidade mas os seus limites. A reciprocidade continua a ser um valor importante, mas ela é limitada pois defende que ao mal se deve responder com o mal, o que reconduz ao eterno ciclo de violência, no qual cada acto de vingança apenas tem por finalidade acentuar e dinamizar a própria violência, levá-la a um estado paroxístico, para cuja saída nas sociedades tradicionais, segundo René Girard, se instituiu a crise sacrificial. Sendo assim, descobre-se que a reciprocidade não é um bem último, um bem em si mesmo.

Podemos pensar as várias figuras em que a relação com o outro se encontra no estado de suspensão da fraternidade, cujo arquétipo na cultura judaica se dá no homicídio de Abel por Caim. O concorrente, o adversário, o rival e o inimigo. Estas são figuras que, numa escalada do desejo conflituante, rompem com a fraternidade e instauram o perigo da desagregação da vida em comum, seja qual for o âmbito em que esta é considerada. Com o sublinhar da necessidade de amar os inimigos e orar pelos perseguidores percebem-se duas coisas essenciais.

Em primeiro lugar, do ponto de vista genético, a preeminência da fraternidade entre os homens sobre as figuras do conflito, independentemente da intensidade da oposição com que se apresentam. Em segundo lugar, a importância estrutural, do ponto de vista da razão prática, da restauração dessa fraternidade, de tal forma que o mandamento ético se consubstancia no amor pelos inimigos e na oração pelos perseguidores. A perfeição, que surge no texto de Mateus, ao mesmo tempo como conclusão narrativa e injunção ética, toma a forma de uma equanimidade perante os homens, uma equanimidade que ordena que todos sejam tratados como irmãos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O Filho do Homem

René Magritte - O Filho do Homem (1964)

Naquele tempo, ao chegar à região de Cesareia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» Eles responderam: «Uns dizem que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas.» Perguntou-lhes de novo: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo.» Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. Dar-te ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.» (Mateus 16,13-19) [Comentário de Bento XVI aqui]

O texto trata da instituição da Igreja, o momento em que Cristo coloca Simão como fundamento dessa Igreja. Esta acto instituinte, contudo, deve ser recolocado no contexto, e este é o de um inquérito. O Mestre interroga o seus discípulos, e interroga-os não sobre qualquer matéria de natureza teórica, sobre alguma coisa que eles pudessem saber pelo estudo, mas acerca da própria natureza do Mestre.

O inquérito não deixa de ser surpreendente e marcado por clara ambiguidade. A primeira questão interroga acerca da crença corrente na opinião pública. A ambiguidade está na expressão, corrente no Antigo e no Novo Testamentos, com que Cristo se designa a si mesmo, o Filho do Homem (ben Adam). Essa expressão, em hebraico e na cultura judaica, remete para a referência homem e desse modo a questão poderia ser reformulada da seguinte forma: “Quem dizem os homens que é o homem?”, o que permite perceber que a questão se dirige à essência do próprio homem. O que sabem os homens de si mesmos?

Os homens sabiam pouco, pois viam em Cristo um homem puramente particular, mas não aquilo que é essencial em todos os homens. Na verdade, não se reconheciam a si mesmos na figura do Mestre. A segunda parte do inquérito é dirigida aos discípulos, e Simão reconhece o Mestre. O que leva Cristo a tomar Simão como o alicerce da sua Igreja é o reconhecimento da profunda identidade entre o Filho do Homem (bem Adam) e o Filho do Deus Vivo. Este reconhecimento de Cristo por parte de Simão Pedro é, concomitantemente, o auto-reconhecimento de Pedro. Todo o homem é filho de Deus.

Os poderes conferidos a Pedro estão fundados no reconhecimento que tem da própria humanidade, da sua origem, no reconhecimento do modelo pelo qual todo o homem foi criado. Esse reconhecimento não nasce da carne e do sangue, isto é, não nasce de uma sabedoria exterior, não vem pelo estudo ou pelo ouvir dizer de uma tradição. O reconhecimento do Filho Homem nasce da vida interior, da revelação do Espírito. A afirmação da sacralidade da vida humana e a condição de possibilidade da afirmação da sua dignidade residem neste reconhecimento alicerçado na revelação. E é sobre estes alicerces que se funda uma nova comunidade, não uma comunidade natural, de natureza bio-social, mas uma comunidade espiritual e moral que, pelo reconhecimento do Filho do Homem, eleva os homens para lá da mera contingência da animalidade.

Sonetos do Viandante (15)

Paul Serusier - O Aguaceiro (1893)

15. Amo os dias taciturnos, amo a sombra

Amo os dias taciturnos, amo a sombra
E a chuva fria que trazem, amo a dor
Que com eles desaba, amo o sopro
Do vendaval e a cinza que se espalha.

Com esta melodia, faço canção
E traço pelo campo a fronteira,
Dessa pátria sem fogo nem futuro,
Casa de colmo, verde de saudade.

Quando a chuva cai, olho a janela
E a terra treme, fímbria luminosa
No veludo rasgado e frio do rosto.

De tudo o que amei, resta-me a penumbra
Que a tua voz desenhava nos dias pálidos,
O perfume vazio dos teus segredos.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Transcendência e reciprocidade

Fernand Léger - A Boda (1910 - 1911)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Pedi, e ser-vos-á dado; procurai, e encontrareis; batei, e hão-de abrir-vos. Pois, quem pede, recebe; e quem procura, encontra; e ao que bate, hão-de abrir. Qual de vós, se o seu filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente? Ora bem, se vós, sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está no Céu dará coisas boas àqueles que lhas pedirem.» «Portanto, o que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas.» (Mateus 7,7-12) [Comentário de Tomás de Aquino aqui]

O excerto seleccionado no evangelho de hoje apresenta uma estranha tensão entre aquilo que parece ser um conjunto de premissas (o que vai de “Pedi, e ser-vos-á dado… até …àqueles que lhas pedirem”) e o que se apresenta na forma de conclusão (“Portanto, o que...”). A tensão resulta das premissas se referirem à relação do homem com Deus, enquanto a conclusão se refere claramente a uma formulação da regra áurea, princípio primeiro de todas as éticas da reciprocidade, portanto de um assunto meramente humano. Como poderemos pensar este absurdo lógico-argumentativo que é derivar uma conclusão referente à simetria das relações entre os homens de um conjunto de premissas cujo conteúdo diz respeito à relação assimétrica entre o homem e Deus?

Uma das possibilidades, talvez a mais radical, é pôr de lado a concatenação lógica entre premissas e conclusão, abrindo a possibilidade de uma outra relação instaurada pelo discurso que não se inscreve na lógica apofântica. Essa possibilidade permite pensar, por exemplo, uma relação de precedência textual: aquilo que vem em primeiro lugar tem uma função de fundamento do que vem depois. Esta decisão ajuda-nos a perceber melhor o texto de Mateus? O que nos diz ela?

Diz-nos que a ética da reciprocidade – que é a essência da Lei mosaica e da sabedoria dos profetas –, com a sua natureza simétrica (faz ao outro aquilo que queres que ele te faça), tem a sua condição de possibilidade na relação assimétrica e misteriosa do homem com Deus. Do lado do homem está o pedido, a procura, o bater à porta. Do outro lado, está a dádiva, a presença e a abertura. Instruídos por esta relação assimétrica os homens podem abrir-se e doar aos outros homens esperando, segundo a principialidade de uma economia do dom, a abertura e a doação por parte do outro.

Se levarmos a exegese do texto mais longe, embora mantendo o critério hermenêutico adoptado, podemos mesmo compreender que aquilo que os homens têm para doar uns aos outros não é outra coisa senão aquilo que receberam na relação assimétrica com Deus. A sua abertura ao outro é feita à imagem e semelhança da abertura de Deus para com o homem. Se se considerar a regra áurea presente na ética da reciprocidade como elemento central da possibilidade de uma comunidade, o texto ensina-nos que essa comunidade só é possível se se fundar na transcendência. É esta que alimenta as relações interiores dessa comunidade e que lhes permite o carácter simétrico.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Na margem do discurso

Guillermo Pérez Villalta - O discurso da verdade (1978)

Naquele tempo, aglomerava-se uma grande multidão à volta de Jesus e Ele começou a dizer: «Esta geração é uma geração perversa; pede um sinal, mas não lhe será dado sinal algum, a não ser o de Jonas. Pois, assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim o será também o Filho do Homem para esta geração. A rainha do Sul há-de levantar-se, na altura do juízo, contra os homens desta geração e há-de condená-los, porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão; ora, aqui está quem é maior do que Salomão! Os ninivitas hão-de levantar-se, na altura do juízo, contra esta geração e hão-de condená-la, porque fizeram penitência ao ouvir a pregação de Jonas; ora, aqui está quem é maior do que Jonas.» (Lucas 11,29-32) [Comentário de Rafael Arnaiz Baron aqui]

O que haverá de reprovável em pedir um sinal? Não é natural que os homens peçam sinais como forma de provar uma pretensão ou confirmar uma alegação? Não será antes reprovável aceitar a palavra do outro apenas fundada no princípio de autoridade que esse outro se arroga, mas que é contestada pela multidão? Talvez fosse estranho já esse pretensão para os homens daqueles dias, mas para nós, homens educados nos princípios do Iluminismo, nada há de mais estranho que a pretensão de Cristo.

O texto dá duas pistas para resolver a questão. Salomão, o rei, foi reconhecido pela Rainha do Sul. Jonas, o profeta, foi reconhecido pelos habitantes de Nínive. Mas Aquele que se apresenta agora – e este agora é um eterno agora – não é reconhecido por ninguém, apesar da sua dignidade real ser maior que a de Salomão, apesar do seu dom de profecia ser maior que o de Jonas. A ausência de reconhecimento significa, neste contexto, que os que pedem um sinal quebraram um laço fundamental, esqueceram alguma coisa que deveriam reconhecer em cada hora. Tornaram-se estranhos, alienaram-se da sua própria natureza, perderam o contacto com a realidade.

O não reconhecimento do Outro é o arquétipo de todos os não reconhecimentos, o do não reconhecimento do próximo e o do não reconhecimento de si mesmo. Não há, porém, a recusa de um sinal, mas a proposição do mais surpreendente dos sinais, o sinal de Jonas, metáfora anunciadora da morte e ressurreição de Cristo, o novo sinal deixado aos que pedem sinais. O carácter surpreendente do sinal reside na sua inverosimilhança. Não é verosímil que aquele que foi engolido por uma baleia seja por ela cuspido com vida, não é verosímil que Aquele que vai morrer na cruz triunfe sobre o sepulcro.

Sobre a inverosimilhança deste sinal foi construída uma religião e edificada uma comunidade de fé que transporta o sinal de geração em geração. Mas o que contém esse sinal? O que sinaliza ele? Claramente, ele sinaliza a perversidade das gerações, a sua incapacidade de reconhecimento, a sua alienação, mas sinaliza a possibilidade de desalienação, a restauração da via do reconhecimento. O sinal, pela sua natureza paradoxal, faz lembrar um koan da tradição do Budismo Zen. Um sinal que ultrapassa a razão e que convoca o homem para a margem do discurso, muito para lá daquilo que as palavras podem dizer, como se o sinal fosse uma convocação ao viver, o que ultrapassaria infinitamente a dimensão cognitiva presente naqueles que exigem sinais.