domingo, 10 de fevereiro de 2013

Carnaval

Máximo Stanzione - Sacrifício a Baco

Mesmo que o Carnaval derive das antigas Saturnais (decorriam, em Roma, em Dezembro), há nele uma forte reminiscência do culto de Diónisos (para os gregos) ou Baco (para os romanos). Um tempo de excesso e de fúria, de desmedida. A Igreja Católica mostrou a sua sabedoria das coisas humanas não tendo destruído a festividade. Como, porém, não podia recorrer à autoridade de um deus Apolo, para repor a ordem e a regra num mundo tomado pelo excesso e os furiosos estertores das ménades, declarou o dia seguinte ao de Carnaval como Quarta-feira de Cinzas. As cinzas recebidas, segundo a doutrina corrente, são motivo de reflexão sobre a conversão. Na verdade, porém, as cinzas são o que resta depois do fogo e do fulgor dionisíaco. O que torna o Carnaval um momento preparatório da própria Quaresma e Páscoa dos cristãos.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Poemas do Viandante (406)

Júlio Pomar - da série Tigres (1983)

406. O desejo cresce no fundo do tigre

O desejo cresce no fundo do tigre,
a luz iluminada pela sombra,
o leito onde o amor se amarrotou.
Desdobro cada ruga da tua pele
e sinto um cântico a pulsar no coração,
a voracidade da ânsia,
o rasgão que me toca o ventre
e traz sobre a noite um uivo animal.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Poemas do Viandante (405)

Ivonne Sánchez Barea - Cienaga roja (1999)

405. Vermelho como o tempo que nos toca

Vermelho como o tempo que nos toca
e deixa um vazio à espera 
de um segredo que o preencha.  

Vermelho como a íntima tempestade,
os frutos abandonados pelo chão
e gritos na cinza da memória.

Vermelho como o cansaço do verão:
as águas secas e a vida presa,
o sossego das tardes que não acabam.

Vermelho como a solidão presa à janela,
debruçada sobre um jardim de seda,
debruada no abismo da infância.

Vermelho como o sangue na arena,
quando a astúcia do dia declina
na sombra da morte anunciada.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Pontos de referência

Laurence Stephen Lowry - A Landmark (1936)

A viagem a que o Viandante foi chamado não tem nesta terra uma meta. É um destino sem destino, um destino que se tece no acto de o cumprir. Isso, porém, não significa que a viagem seja desreferenciada. Cada encontro é um ponto de referência, um marco, uma baliza que sugere a rota a seguir. São perigosos, porém, os pontos de referência. Se o Viandante os toma como um fim, então a viagem está perdida. O nobre nómada cedeu à tentação da vida sedentária.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Poemas do Viandante (404)

Ivonne Sánchez Barea - Cienaga amarilla (1999)

404. O excesso de loucura sobre o deserto

O excesso de loucura sobre o deserto
ergue constelações de areia
no espaço sideral.

Seguimos os dois, ombro a ombro,
e tomamos da terra a breve flora.
Compomos um horizonte volátil
e aguardamos as primeiras chuvas.

Quando chegam as longas noites de verão,
despedimo-nos do amarelo da paisagem
e adormecemos no fulgor do silêncio.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Da inocência

Paul Gauguin - A perda da inocência (1871)

Como a primeira inocência é já tão culpada. Nela reside a sua própria perda. Como foi possível uma visão tão fruste da inocência? Como se gerou esse equívoco que a confunde com a ausência da experiência? A questão não está em evitar a acção ou a tentação, mas em entregar-se ao agir de forma que ele se torne puro. Não é a experiência que macula o homem, mas é o homem que mancha as suas experiências. O fundamental não é a inocência mas o tornar-se inocente. O problema não reside em perder a inocência mas em não a conquistar.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Haikai do Viandante (124)

Paul Cornoyer - Early Spring in Central Park

Árvores em flor
rasgam o tempo de chuva:
água, luz e amor.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Enigma

Gustave Doré - O Enigma (1871)

A autêntica viagem não começa quando, como aconteceu com Édipo, se descobre o enigma proposto pela esfinge. Um enigma que se deixa decifrar não é um enigma, mas uma armadilha do destino. Para Édipo, a verdadeira viagem começou no momento trágico em que, ao saber que casara com a própria mãe, se cegou. A partir daí, não haveria mais enigmas decifrados, mas uma viagem de enigma em enigma, uma viagem em cada enigma se tornava cada vez mais enigmático. Assim, Édipo se tornou um viandante.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Poemas do Viandante (403)

Ivonne Sánchez Barea - Cienaga azul I (1999)

403. O azul desliza sob os meus dedos

O azul desliza sob os meus dedos,
promessas trazidas do mar,
o resto dos dias frios,
a verdade que se esconde ao olhar.

Construíamos paisagens de gelo
e aguardávamos a primavera,
a sombra dos primeiros frutos,
os ventos correndo sobre a hera.

A breve simplicidade do céu descia
e em nós abria-se volátil.
Trazia paisagens de cobalto
presas a um fogo de luz anil.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Distorção de si mesmo

Francis Bacon - Three Studies for Self-Portrait (1974)

As estratégias de representação do self (si-mesmo), tanto do próprio como de outros, usadas por Francis Bacon têm o especial condão de tornar evidente o que há de distorcido na representação de si. Contentamo-nos com uma visão apolínea de nós mesmos e dos outros, uma visão que nos tranquiliza e nos mergulha numa doce ilusão, uma ilusão, por feios que sejamos, que é sempre um exercício de narcisismo. Mas, sob essa capa, esconde-se o tenebroso, o fundo obscuro de uma natureza a que nos tornámos estranhos. 

As religiões foram sempre dispositivos tecnológicos para enfrentar esse tenebroso, para o apaziguar e domesticar. A pintura de Bacon inscreve-se num tempo em que a religião perdeu essa força primordial. Ela mostra uma dupla distorção na representação do self. Por um lado, denuncia a representação natural como uma ilusão, como uma distorção da nossa verdade. Por outro, mostra o que de distorcido se esconde em nós. Deixa ainda lugar para a suspeita de que o interesse em si mesmo é a fonte de todas as distorções. Estes quadros de Bacon podem ser lidos como uma preparação espiritual ao abandono de si mesmo.