segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sonetos do Viandante (11)

Edward Burne Jones - Amor entre las ruinas (1894)


11. De todas as palavras, uma basta

De todas as palavras, uma basta
para que nesta hora a vida valha
mais que a dor ou a raiva que nos tolhe,
mais que a alegria falsa derramada.

Esqueçamos os dias que se gastaram,
bebamos sem limite ao ano novo,
que disfarçado chega pela sombra,
onde o terror se esconde silencioso.

Não falemos de orvalhos nem de ventos,
não falemos de estios incendiados.
Procuremos a pálida palavra

que ao coração anima nestas horas,
verbo de seda e musgo que ao cantar
abre ao amor a rosa tão cansada.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Paisagens espectrais

Carlo Carra - Depois do pôr do sol (1926)

Há um momento na história do Ocidente em que, libertando-se de Deus, os homens colocaram na razão toda a sua fé e toda a sua esperança. Em muitos aspectos, a razão não desiludiu os homens e pagou-lhes com abundante generosidade o culto que lhe foi prestado. Onde, porém, os homens mais necessitavam dessa razão, ela foi impotente para os satisfazer. Libertos das narrativas teológicas e dos símbolos ambíguos que um dia tinham dado direcção à vida, esperavam que a razão lhes desse uma orientação e um sentido. Ela multiplicou-se em propostas, programas e projectos, mas o esforço redundou sempre em algo risível. Hoje, apesar do intelecto calculador e científico parecer estar instalado em terra firme, a razão é um astro declinante. Na verdade, ela é um sol que se pôs e a luz que emite tem o condão de transformar tudo numa paisagem espectral e habitada por fantasmas. Para além da submissão ao trabalho, aos interesses dos mercados e à vida material, a razão, na sua autonomia, nada mais tem para propor, a quem nela tanto confiou, do que o vazio do espírito.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (116)

Caspar David Friedrich - City at Moonrise (1817)

Noite silenciosa,
pura sombra incendiada,
negra e branca rosa.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Da solidão

Richard Wilson - Solitude (1762-1770)

Como poderemos escutar o rumor da vida? Onde ela se torna mais plena e mais significante. Só na solidão a vida deixa escutar o seu rumor. Não numa qualquer solidão, mas naquela em que espírito, mesmo se acompanhado, encontra o seu espaço e o protege contra qualquer invasão. Estar só é entrar no segredo da nossa natureza e aceitar a nossa condição. Dizer que a solidão é a nossa condição tem a vantagem de mostrar que o solitário não é o produto de nenhuma decisão heróica, mas de uma conformação com aquilo que se é. Não há tragédia nem sequer drama na solidão. O que pode ser doloroso é o medo da solidão, a fuga perante a nossa natureza, a impotência perante o segredo que nos constitui e rumoreja no fundo de cada um.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A cidade

George Grosz - Metrópolis (1916-17)

A grande cidade é uma das tecnologias mais interessantes concebidas até hoje. Nela, o espírito encontra sempre novos caminhos, traça novas ilusões, cria novos prazeres. Nessa actividade febril, em que se descobre como criador, o espírito perde-se de si, aliena-se, e, exaurido, sucumbe às suas próprias criações. Daí a ambivalência que se sente perante a grande metrópole, o desejo de nela mergulhar e a injunção para fugir dela, como lugar de grande perdição, partir para o deserto, para aí o espírito se reencontrar e reconciliar consigo mesmo. O mais importante, porém, é que o espírito não fuja do lugar onde se encontra. Que saiba na metrópole encontrar o deserto, e no deserto descobrir a actividade fervilhante que a cidade lhe propõe.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (394)

Caspar David Friedrich - Árbol con cuervos

 394. Voam corvos sobre a árvore

Voam corvos sobre a árvore,
trazem uma sombra presa nas asas
e um rumor de saudade
quando poisam nos ramos.

Chegam e tudo escurece,
a vida, a luz do sol,
e as tarde de primavera
lembram noites de inverno.

Para que queremos a razão,
se temos um corvo na janela?
Basta-nos a névoa da manhã
e a dor do sol ao entardecer.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (115)

Thomas Cole - A Tornado (1835)

Terra e céu rasgaram-se
e o vento entrou pelo mundo:
dor e inquietação.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (393)

Edward Burne Jones - La Estrella de Belén (1890)

393. Vai chegar a noite definitiva e primeira

Vai chegar a noite definitiva e primeira,
a que nunca vem, a que nunca regressa,
a noite que não parte nem chega.
O silêncio acolhe os seus passos,
uma estrela suspende o fôlego
e abre-se como um farol no horizonte.

Os anjos deixaram de levitar,
os reis perderam-se no deserto
e os pastores esqueceram os rebanhos.
A vida oscila entre tumultuosas margens
e dezembro quase morto ergue-se
para que no homem haja Deus por imagem.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (114)

Alexander Cozens - A Wooded Path

Árvores e luz,
senda aberta na floresta.
Sombra, sombria sombra.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Do Advento ao Natal

Robert Campin - The Annunciation (1420-1440)

Poder-se-á pensar que, com a vinda do Natal, estamos a chegar ao fim do Advento. O Advento é sempre um tempo de expectativa, a expectativa da chegada. Se ultrapassarmos uma leitura racionalizante da simbólica cristã, poderemos compreender que o Advento não é uma mera época onde se prepara a vindo do Cristo, mas símbolo de uma expectativa eterna da chegada do também eterno Natal desse Cristo. Isto permite-nos pensar que todos os momentos do ano litúrgico são sombras temporais, símbolos materiais e relativos, de um conjunto de símbolos eternos e absolutos. Sao símbolos de outros símbolos. A sua imersão no tempo histórico e no tempo litúrgico comporta, então, uma ambiguidade. 

Por um lado, torna compreensível à razão e ao sentimento dos homens um conjunto de mistérios que não são nem racionais nem afectivos, que não pertencem ao tempo mas àquilo que está para além do tempo. Esse tornar acessível à dimensão psicológica do homem aquilo que ele não pode compreender significa uma convocação. Convocação para se elevar do que é sensível, afectivo e racional  para aquilo que ultrapassa a compreensão permitida pelo uso habitual do psiquismo humano. Convocação para o homem se elevar da dimensão histórica à dimensão da eternidade. Estes símbolos que estruturam, no cristianismo, a dimensão temporal da vida humana são aberturas para o que não é temporal, portas por onde o viandante poderá entrar e elevar-se ao mistério eterno do Ser.

Por outro lado, o facto desses símbolos se terem historicizado e ganho um lugar no calendário - no calendário litúrgico e no calendário civil - pode ter o efeito de obstruir a compreensão para a natureza fundamentalmente simbólica desses acontecimentos e reduzi-los a puros eventos históricos idênticos à queda do Império Romano ou a derrota de Napoleão em Waterloo. Reduzidos a acontecimentos históricos plasmados no calendário civil e litúrgico, os símbolos presentes no cristianismo tornar-se-ão a referência a coisas relativas e passageiras, cuja realidade ontológica não diferirá daquela que têm os acontecimentos humanos. Por isso, será importante recordar que este Advento que se aproxima do fim não é mais do que a sombra de um Advento eterno, expectativa e esperança absolutas.