quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (111)

Piet Mondrian - Árvores em flor (1912)

Estranha floresta,
de árvores brancas em flor,
sem folhas nem giesta.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Arte e contemplação

Jesús de Perceval - Adán (1930)

Le rôle de Adam, (...), est de regarder la création, de la voir, de la reconnaître et de lui donner ainsi une existence nouvelle et spirituelle. Il imite et reproduit l'action créatrice de Dieu en répétant, dans le silence de son intelligence, la parole qui a donné la vie à toutes les choses vivantes. (Thomas Merton, Le Nouvel Homme, pp.65.)

Na economia da natureza, o papel central do homem é absolutamente espiritual. Esse papel está centrado numa atitude contemplativa. O homem, Adão, é aquele que olha, que vê, que contempla a criação, o mundo. É nesta atitude contemplativa que esse mesmo mundo ganha sentido, ganha uma existência nova e espiritual, uma existência que ultrapassa a mera materialidade com que o conjunto das coisas se dão aos sentidos e à imaginação animal. Contudo, a contemplação possui, ela própria, uma dinâmica, que a torna bem diferente de uma atitude puramente passiva. Contemplar é uma forma de mimesis, de imitação da palavra originária que chamou as coisas ao conjunto da existência. Compreende-se, então, que contemplar é uma forma de arte e que esta só é criadora porque imita, mima, a palavra originária cuja vibração trouxe do nada ao ser o conjunto de tudo aquilo que existe. Uma arte que não seja fundada na contemplação, nessa mimesis da palavra originária, não é arte mas pura poluição.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (389)

Agnes Martin - Canción (1962)

389. Uma melodia feita de cores e poeira

Uma melodia feita de cores e poeira,
a canção de coral e água,
todo o mistério de uma vida
recolhido num punhado de areia.

Olho-te e retenho o fôlego.
Espero o delírio de cada inspiração,
e em breves haustos entrego-me
ao sussurro da tarde,
nas tuas mãos tecidas de branco
e anémonas marinhas.

sábado, 8 de dezembro de 2012

O bezerro de ouro

Robert Delaunay - Saint-Séverin n.º 2 (1909)

As igrejas e catedrais góticas, mais que todas as outras, tinham no cerne da sua concepção o mistério que conduz o olhar do homem para cima, para aquilo que há de mais elevado no universo dos valores humanos. Esse estranho e vilipendiado mundo gótico, estruturado nos arcos ogivais, que ao fechar apontavam para o alto e simbolizam o mistério da vida, tinha a virtude de fazer coincidir a elevação com aquilo que era o bem supremo. Hoje os homens expulsaram Deus do alto. Muitas igrejas modernas fazem lembrar centros de conferências ou, em casos mais radicais, locais de espetáculo. A altitude e a elevação foram guardadas para as novas catedrais, as sedes dos grandes bancos, locais da nova-velha religião, lugar onde se oculta o seu santo dos santos. O bezerro de ouro tomou, mais uma vez, o coração dos homens.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (388)

Paul Klee - Open Book (1930)

388. Pego neste livro e desfolho-o

Pego neste livro e desfolho-o,
deixo que as páginas escorreguem,
e espalhem pelo chão um mar de letras,
rios de tinta negra,
o mistério inconsolável do teu coração.

No espasmo que segue a queda,
escuto a dor na quietação da tarde.
Tristeza a arder no peito,
corcel vibrante e desgarrado
que por terra recolhe as sílabas
com que desenha o livro da tua perdição.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (110)

Agnes Martin - Azul cadente (1963)

Paisagem anil
riscada sobre papel
lembra o céu de abril.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Efeitos especiais

Albert Bloch - Figures in silver light (study) (1943)

A vida é uma luta contra a opacidade, contra a nossa própria opacidade. Na verdade, se meditarmos um pouco, não há ser mais estranho e mais opaco a nós do aquele que diz eu quando falamos. Essa opacidade nasce, em primeiro lugar, da ilusão de que nada nos é mais conhecido do que nós mesmos, como se pelo facto de sermos sujeitos e objectos de conhecimento ao mesmo tempo facilitasse o acesso a esse objecto. Em segundo lugar, esse mesmo facto, o de sermos sujeito e objecto, é produtor de opacidade e de escuridão. Dividimo-nos e tornamo-nos estranhos a nós próprios. Por fim, o acto de dizer eu parece assegurar uma certeza certificada de que sabemos o que estamos a dizer, uma certeza que sabemos quem é esse eu. Ora, o eu é um lugar vazio - o pronome pessoal na primeira pessoa - que qualquer um ocupa quando toma a palavra e, ao calar-se, deixa vazio. Na realidade, não passamos de figuras banhadas por uma luz prateada. Somos opacos a nós mesmos, mas a tonalidade luminosa cria-nos a ilusão da transparência. Mas isso não passa de efeitos especiais.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (387)

Ando Hiroshige - A mountain in the snow (1834)

387. Cavalgo o frio trazido pelo inverno

Cavalgo o frio trazido pelo inverno
e entrego-me à solidão.
A montanha cobriu-se de neve,
os pássaros azuis partiram
e o sul é agora mais longe.

Improviso na tarde que cai
a luz que vencerá a noite.
Oiço o crepitar das labaredas
e as mãos, tão gélidas, aquecem
e abrem-se para o silêncio da escuridão.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (109)

Felip Brugueras - Paisage de la carrotxa (1994)

As cores de outono
anunciam floresta fora
o tempo do sono.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Solidão e mistério

Carlo Carra - Solitudine (1917)

Vivemos num tempo ambíguo relativamente à solidão. Por um lado, não apenas somos convocados para a vida em rebanho, como essa vida nos entra porta dentro sem que tenha sido convidada. Por outro lado, são inúmeros os seres humanos que vivem solidões indesejadas, abandonados à sua sorte, solidões que doem desesperadamente. A vida em rebanho e essa solidão indesejada são as duas faces da mesma moeda. Essa moeda é a alienação, o estranhamento a que as sociedades modernas parecem querer condenar os homens. Alienação significa aqui o estranhamento a si mesmo, à sua natureza mais funda, o estranhamento à essência que nos torna verdadeiramente humanos. 

Essa alienação tem ainda o condão de ocultar a necessidade que cada ser humano possui de solidão. Não da solidão negativa fruto da impotência, mas de uma solidão que permita o encontro de cada um consigo mesmo, com aquilo que de mais secreto habita no fundo dos homens. Essa solidão exige o silêncio. Em primeiro lugar, o silêncio exterior, o afastamento da algazarra feérica que anima a vida do rebanho. Em segundo lugar, o silêncio interior, o abandono das ilusões, mas também dos desejos e receios com que, continuamente, nos enganamos. A solidão, a verdadeira solidão, não implica o corte radical com os outros, mas uma vida temperada onde o estar só e o estar acompanhado se equilibram. Esse equilíbrio é uma condição necessária para que cada um se confronte com a verdade que traz em si, com o mistério que foi cifrado ao ser concebido e ter vindo à vida.