quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (359)

Paul Gauguin - Y el oro de sus cuerpos (1901)

359. TODAS ESSAS PERPLEXIDADES TRAZIDAS NO CORPO

Todas essas perplexidades trazidas no corpo,
a angústia fabricada pelo passar das horas,
uma dor estranha ao dobrar da esquina,
os músculos que se deslassam ou os ossos
doridos, ateando pesadelos na noite,
a face entrecortada aberta no salitre da casa.

Sempre que o outono se aproxima, o calor redobra,
desenha matagais em fogo, tragédias luminosas,
abre sulcos na pele e sobressaltos no coração.
São violentos para a tua alma os meses do estio
e nessa violência se despedem e entregam ao ocaso,
o suspiro aberto no peito, as águas que virão.

De olhos abertos, escondes-me o segredo,
a pele lêveda, o desejo insaciável na noite fria.
Dolente, estendes a mão e tocas-me ao de leve.
Um sino dobra no fausto do passado,
desenha uma canção que a vida esquecera
e agora brilha na caruma baça do dia.

Abre o alvoroço  da tua casa à minha mão
e deixa que o vento sossegue o incêndio.
De todas as coisas que nos cabem, a mais difícil
é a verdade do que somos, a luz impiedosa sobre
a cabeça, o lugar onde o esquecimento nasce
e se derrama para nos salvar, náufragos da ilusão.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (358)

Salvador Dali - Lilas del tiempo

358. O TEMPO NÃO É UMA HASTE OU UM BARCO

O tempo não é uma haste ou um barco,
não é a mão estendida sobre a vida
ou o sopro do vento contra a parede da tarde.
Feroz labirinto de sentido único,
ondulação que vai mas não volta,
espuma tão frágil que logo se dissolve.

Não sabemos de onde veio nem o destino,
apenas as rugas que sulcam a pele,
os dentes cariados com que o mundo devora
a vida, precária flor sobre a terra abandonada.
Lançamos-lhe armadilhas, metáforas, metonímias,
e ele corre serenamente sobre a paisagem,

traça sulcos e chama-lhe rios da memória,
por vezes toma um ar sério e glorioso,
outras não passa do velho andrajoso
que desenha ruínas a que chama história.
Ou gesta ou caminho ou outra coisa sem sentido,
pois o tempo é inimigo da semântica,

cavaleiro que não repousa sobre a terra,
sempre a meio caminho entre o nada que fabricou
e o outro nada que de longe o chama.
O tempo não é uma casa branca de orvalho
nem o rosto da lua na vastidão negra do céu,
mas o desejo que me prende ao que não aconteceu.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (357)

Julio Romero de Torres - Canto de Amor

357. NÃO É VÃO AQUILO EM QUE O AMOR SE DEPOSITA

Não é vão aquilo em que o amor se deposita
e traz da invisível obscuridade para a luz,
fazendo eclodir sobre as águas uma sombra,
o cântico sereno do que chega à plenitude.
Nesse extremo cuidado de tudo cuidar abre-se
a lâmpada radiosa e sem mácula do meio-dia,
a hora em que o universo, por instantes, suspende
a marcha que o impele sempre mais além,
para redesenhar fronteiras e criar, onde nada
havia, o espaço para a nossa funda interrogação.

Aqueles que mais amam são os que perguntam.
Em cada pergunta cindem um átomo de amor,
pura energia libertada sobre as paisagens,
que se levantam perante os olhos da alma,
que assim vislumbra o mundo e a matéria,
as flores recolhidas no abraço de um ramo
deixado, como sempre fizeste, junto à parede
do fundo, a antecâmara dos dias felizes,
as horas em que, crianças sem ocupação,
nada sabíamos da nossa eterna sabedoria.

E logo que o nosso amor toca na raiz,
a árvore floresce e desdobra-se depois
em frutos, as tuas mãos presas nas minhas,
o teu corpo despido sugado pelo meu.
E a tudo o amor liberta da ávida servidão,
aos homens que perante o nada se ajoelham,
aos anjos que se calam diante do desastre,
a Deus preso no silêncio com que cobre a vida,
a deixa levedar entre miasmas de dor
e as rosadas pústulas do incerto prazer.

Canto nesta manhã a pura ascese da matéria,
o triunfo de cada corpo sobre o caos,
o ronronar flébil das agulhas na vastidão do
pinhal, breve pomar de antigas caravelas,
promessas que o tempo trouxe e logo desfez.
O fogo decanta o amor da impura inclinação
e abre-o para as paisagens que o amante
descobre na terrível solidão da coisa amada,
pomar vazio à espera de um olhar incendiado,
uma porta para a clareira do súbito fervor.

domingo, 16 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (356)

Jean-Michel Basquiat - Earth (1984)

356. CELEBRAMOS O AÇO QUE PERFURA O ROSTO DA TERRA

Celebramos o aço que perfura o rosto da terra
e, incapazes de escutar os anjos,
não ouvimos os gritos que dela chegam,
inundam as florestas que perderam a bênção,
o gesto com que ungias o coração do mundo
e asseguravas a todas as coisas a ordem.

Somos os irados peregrinos que olham
para o incêndio que te lavra nas entranhas,
e descobrem na lava os escombros
com que escondes a abissal cicatriz que nós,
filhos pobres e insaciáveis do velho Prometeu,
pelo aço não mais deixaremos de tracejar.

A precária caravela perdeu-se no mar de trevas,
e as ruas são apenas uma ferida aberta
em teu corpo esguio de mulher tardia,
aquela que chegou dentro de um segredo,
o rumor nascido para além da fronteira,
a noite polar em que dormindo aguardavas.

Mater silenciosa, o que fizeram do teu silêncio?
Ouve-se o ruir das paredes na planície fria
e mil anátemas são lançados sobre o portal,
onde o dia e a noite em discórdia se separam,
rasgando mais e mais a pele suave da tua face,
que o aço incansável não para de perfurar.

sábado, 15 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (355)

Paul Klee - Destrucción y esperanza (1915)

355. O MUNDO FOI TOMADO PELOS CURADORES DO MAL

O mundo foi tomado pelos curadores do mal,
incendiários sem rosto nem alma,
vómito vindo do abismo inominável,
pelo qual o declínio do que amámos chega,
traça uma rota no saibro escuro,
um casebre onde a encurralada vida grita,
no desespero esperançoso de que a rosa volte
e abra as suas pétalas puras para o céu.

Quebraram o suave jugo que ao tempo continha
naquele lento fluir das estações inexoráveis,
cavalo tresmalhado perdido nos matagais,
que o vurmo deslizante da negra mão ateia.
Os terríveis emissários falsearam a moeda,
o fundo oculto em que a vida se firmava,
para que as gerações se sucedessem e as estirpes
fugissem do terror antigo, agora retornado.

E aberta a caixa sem nome tudo treme e vacila,
as sólidas constelações dos céus, a rocha
firme que o velho e amado mundo suporta.
Sonho ainda com o teu puro coração
e, na ácida corrosão que os dias desenham,
deixo escapar dos lábios inermes a palavra
ó figlia del tuo figlio, e canto sobre a noite
a casa e o jardim que a infância me fez amar.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (354)

Dante Gabriel Rossetti - Venus Verticordia (1864-68)

354. DESDOBRAS-TE EM MIL APARÊNCIAS

Desdobras-te em mil aparências,
essas velhas fotografias que assinalam a minha
ausência, perdido num mundo tão distante,
a amarga consciência de te não saber,
as horas que se tornaram dias, meses, a vida.
Ó pobre epopeia da perdição,
resta-me o desejo de te ter desejado,
nesses tempos em que a chuva caía, o sol raiava,
e as estações enfileiradas nos carris partiam,
umas atrás das outras; nunca mais voltaram.

Pego na tua face acabada de inventar
e desenho-lhe olhos, boca, nariz,
para contemplar a minha obra ao som da música
que se estende sob a copa bravia dos céus,
enquanto a violência do amor cresce,
estrondeia nas células da minha alma
e abre-se, flor de pétalas vermelhas cravejadas
de incenso, a glória descarnada desta mão.

Rasgo-te a carne com o sopro do sexo
e vejo o sangue fluir sobre a pele,
um risco insano e anémico traçado de luz,
um vale que se abre para que o cirza de saliva,
e ali construa a casa que me espera,
alicerces, paredes, janelas, um telhado de erva,
aquele jardim de anémonas pendendo na água,
a esperança de adormecer na esquina do teu corpo.

Tinhas a cegueira por nome e uma promessa
de floresta bravia, arvoredos banhados de insectos,
a luz de um anjo a saltar-te dos olhos,
e o corpo vazio à espera da minha sombra.
Sai da moldura onde te escondes e me evitas,
vem lábil e eterna, luminosa e negra poisar nesta
cama, de lençóis gastos e linho rasgado,
e deixa que imóvel o teu corpo se entregue
ao desconcertado zumbido do deus do amor.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Da graça e da força

George Grosz - Kraft und Anmut (1922)

Poder-se-á traduzir o título do quadro de Grosz, Kraft und Anmut, por vigor e elegância. Estaria certamente de acordo com o espírito da obra. No entanto, prefiro outra tradução: força e graça. Graça no sentido daquilo que é gracioso, não no sentido de graça divina, pois em alemão esta graça diz-se Gnade. Este afastamento lexical entre Anmut e Gnade não permite compreender aquilo que é de imediato perceptível em português: o carácter gratuito da graciosidade, da beleza. A graça de uma mulher, a sua elegância, não é uma mera obra sua mas uma dádiva recebida, um dom. e sem ele não há esforço que dê graça a uma mulher. Dito de outra maneira, a graça é uma Graça. Já Kraft reenvia para a ideia de exercício e de esforço. A força ou o vigor são um produto próprio, o resultado de um exercício que pretende transformar a fragilidade do homem em força. Daí, o carácter eternamente rude da força, ao contrário da natureza etérea da graciosidade feminina. 

Poemas do Viandante (353)

Martin Johnson Heade - Approaching Thunderstorm (1859)

353. TRAGO O POEMA PARA O MEIO DA RUA

Trago o poema para o meio da rua,
traço com ele um lastro de sangue e vinagre,
visto-o de impurezas que a vida me dá
e deixo-o, feliz, rebolar-se na lama,
rastejar sobre pedras e cardos,
para se levantar, um uivo na madrugada.

Não pensem que traz um programa, um mundo,
a licença que vos liberta de ir à vida.
Não pensem que vos dispensa do suor
ou que derrama lágrimas nos vossos olhos.
Não pensem que é a voz de Deus ou do profeta,
a súbita anunciação do paraíso reencontrado.

São apenas palavras sujas roladas na terra,
atiradas à cabeça dos incautos,
uma onda de vento azul nascida no oceano,
ínfimas estrelas cadentes que riscam
a noite, o dia, o ritmo das mãos
perdidas num corpo sedento aberto ao luar.

O poema que desce pela rua é uma víscera,
as sílabas decompostas e a gramática em putrefacção,
uma recusa de água pura e de amor sublime,
a jangada vazia perdida na vastidão do mar.
Por vezes, o poema canta na fímbria da tarde,
uma promessa, uma alegria, a dor da solidão.

Palavras, quimeras na pérgula do quintal,
balas de borracha e gás lacrimogéneo lançados
sobre uma multidão de ervas e cactos,
testamentos antigos que prescrevem
o eterno dever de amar a traição,
o exercício de morrer às mãos de quem nos ama.

O poema passeia solitário na avenida vazia,
cobre-se na sombra das velhas árvores
tracejadas pelo infalível micróbio da morte.
Cresce depois sob a luz de um sol sem clemência,
eleva-se, torna-se no céu a mais negra nuvem
e cai como pedra e fogo sobre o chão da rua.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (352)

Antonio Tápies - Noche Desprendida (1952)

352. A TRÉMULA VERDADE BALBUCIADA PELA TUA BOCA

A trémula verdade balbuciada pela tua boca,
pequeno farrapo de orvalho escondido
numa manhã fresca e sem sol,
dorme agora na negra caverna do meu corpo,
pobre matéria amontoada pela vida,
carne lacerada e aberta ao voo do milhafre,
um cântico sem luz nem melodia.

Tudo fora um lento exercício de mágoa,
a entrega inopinada no leito voraz,
as paredes brancas silenciadas na tarde,
os seios tremendo sob o peso do lençol,
os lábios entreabertos à espera de Deus.

Deixara de haver um futuro para consumar.
Ele chegara no regaço da tarde,
e era vento soprado do norte, uma canção
triste que subia pelas águas da montanha
e desaguava na sede das searas no estio.

Oiço o breve troar do sangue no teu coração
e sento-me à janela para ver o vento passar.
São apenas imagens, pequenas sequências,
o filme gasto de um quarto à beira-mar.
Hoje, estou eternamente de quarentena,
o mal que veio sobre o mundo infestou-me,
e se te vejo ao longe ou oiço nas trevas, sei
que não há remédio que nos livre da escuridão.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Poemas do Viandante (351)

Odilon Redon - Mujer desnuda en la roca

351. ESSES EPISÓDIOS DE QUE NUNCA FALAS

Esses episódios de que nunca falas,
o estranho rumor do teu corpo ao abrir-se,
as núpcias fantasmagóricas em terra estrangeira.
Ao fundo, o mar entrega-se à volúpia das marés,
chama por marinheiros e pescadores,
desenha promessas de naufrágios,
uma onda outonal na pele dos veraneantes.

Quero olhar para ti e ver a luz, disseste.
Tudo tremia na brancura desse corpo,
os espasmos da noite, a claridade do dia,
o desejo sobressaltado sob o véu do pudor.
São difíceis as paisagens marítimas,
rochas escarpadas e vegetação arbustiva,
o abismo daquilo que não tem retorno.

Toco-te entre as ondas da memória
e uma espuma branca vem nas águas,
deixa um vestígio de mar e sal
na pele aberta sob o desejo da boca.
Sou apenas a sombra de um arbusto,
um limo perdido no desamparo do cais,
a promessa adiada no desvão do silêncio.