domingo, 10 de junho de 2012

Haikai do Viandante (83)

Jackson Pollock - Blue Poles, Number 11 (1952)

uma seara densa
campo onde nasce a luz
daquele que pensa

sábado, 9 de junho de 2012

Viagem para si

Mario Sironi - Ciclista (1916-1920)

Primeiro os animais e depois as máquinas foram os meios que o homem inventou para imprimir velocidade à viagem. Nada mais estranho, porém, à viagem do que a velocidade. O caminho faz-se não para nos deslocarmos de um ponto para outro, mas para descobrirmos que o ponto de partida e o de chegada é o mesmo. Se assim é, que interesse tem a velocidade a que o corpo se desloca? O viandante não pretende ir de A para B, mas coincidir consigo mesmo, com aquilo que o constitui e o institui, no lugar onde está. Quanto mais lenta for a deslocação, mais intensa é a viagem. O ideal regulador de quem caminha é a pura possibilidade de permanecer estático.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Da adoração dos ídolos

Umberto Boccioni - Idolo Moderno (1911)

Se há característica específica do tempos modernos, essa é a da idolatria. Perante o desafio da vida e as exigências da viagem em direcção a si mesmo, o homem moderno de tudo faz um ídolo onde se aliena e se perde. A idolatria é a fuga perante o espírito, a deificação da materialidade evanescente, das pequenas coisas que a nossa faculdade de desejar toma como objecto momentâneo de prazer. No exercício idolátrico, contudo, cada ídolo arvorado pelo homem sofre, apesar do culto prestado, uma diminuição no seu verdadeiro ser. Um ídolo nasce da separação da realidade a que pertence.  É esse corte que permite a aparente absolutização que está presente na adoração. Mas essa separação destrói as ligações que mantêm na realidade o ente idolatrado, o tornam em nada, o despem de todo o conteúdo ontológico. É este nada, e não mais do que ele, aquilo que a coisa adorada tem para oferecer ao adorador. O niilismo não é outra coisa que o processo de idolatria em curso há séculos. Sob o efeito do ídolo arquetípico, o homem transforma-se à sua imagem e semelhança, isto é, toma o nada como a sua efectiva natureza.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Poemas do Viandante (271)

Kazimir Malevich - Por la mañana, después de la tormenta, en la aldea (1912)

271. Malevich, Por la mañana, después de la tormenta, en la aldea

veio a neve
incendiou a noite
trouxe clarões de seda
sobre as ruas

e na brancura da tempestade
o sol inscreveu
frio e cortante
o sopro do dia

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Haikai do Viandante (82)

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

súbita alquimia
transforma o chumbo nocturno
em oiro do dia

terça-feira, 5 de junho de 2012

O peso da sombra

Francis Bacon - Study for a Portait of Van Gogh V (1957)

Aquilo que pesa na viagem não é a materialidade do corpo. O grande obstáculo, o que está submetido ao império da gravidade, o que torna o passo mais lento é o peso da sombra. Quanto mais baixo estiver o sol, mais pesada se torna a nossa sombra. Ao nascer, a sombra é apenas uma possibilidade. Ao avançar na vida, a sombra pega-se a nós, cresce desmesuradamente, torna-se opaca, sólida. O pobre viandante está condenado a arrastar atrás de si essa sombra que foi acumulando. Sábio seria o homem que, ao viver, nunca acumulasse sombra, pois caminharia leve e nada o reteria na viagem. Mas nascemos sem sabedoria e, conforme a vida se vai desenrolando, mais longe ficamos dela, até que, vergados ao peso da sombra, ficamos estáticos e entramos no reino das sombras, onde a morte espera silenciosa por nós.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Haikai do Viandante (81)

Jackson Pollock - Convergence (1952)

este estranho mapa
traça rios na floresta
sob um sol que mata

domingo, 3 de junho de 2012

Poemas do Viandante (270)

Kazimir Malevich - Mujer cogiendo flores (1908)

270. MALEVICH, MUJER COGIENDO FLORES

colho-te  no olhar
a pele nua
e em cada flor
uma pétala voa
pássaro de água
no sussurro da rua

sábado, 2 de junho de 2012

Haikai do Viandante (80)

Jackson Pollock - Galaxy (1947)

galáxias de tinta
nascem dos olhos e mãos
astros de quem sinta

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A pobreza mais radical

Jiri Georg Dokoupil - Cuadro de neumáticos beige gris (1991)

Um rasto é aquilo que a vida vivida deixa atrás de si. Por vezes, confundimos a memória, esse estratagema da ilusão de si, com o acontecido. Mas este desvaneceu-se, pulverizou-se, foi deglutido pela gula de Cronos. O que fica são traços, leves sinais, um risco no tampo da mesa, o rasto de pneus no alcatrão da vida. Incapazes de suster o momento, de permanecer perante o instante, sublimamos a nossa impotência olhando o que deixámos para trás ou refugiando-nos na expectativa do que há-de vir. Reside aqui, nessa impossibilidade de coincidir com o tempo onde existimos, todo o desconforto da espécie humana. Por isso, evadimo-nos ora para o passado ora para o futuro, como se fosse impossível fazermos do presente, desse presente pontual onde somos o que somos, a nossa casa. A nossa pobreza, aquela que é mais radical, não se encontra no facto de termos sido pobres ou no de o virmos a ser. Ela reside no simples facto de não encontramos abrigo no tempo presente.