domingo, 8 de abril de 2012

Ressurreição


Começar mais uma vez? Recomeçar? Uma ressurreição que seja uma retorno ao começo não é uma ressurreição, mas o eterno retorno do idêntico. O que haverá no mistério da ressurreição de Cristo que prenda ainda a fé dos homens? Sim, certamente, a promessa da vitória contra a morte, a ideia de uma vida eterna, a expectativa de um além onde não haja condenação ao nada eterno, tudo isso é atraente, tudo isso fixa a imaginação popular, e dá-lhe um suporte intuitivo para a fé. Será, porém, isso que está em jogo? Melhor, será apenas isso que se jogo no mistério da ressurreição de Cristo? 

Se for apenas isso, então é uma espécie de desafio para que se protele a vida nova, que se adie para depois da morte a ressurreição. A ressurreição crística, todavia, é um desafio a nós que estamos mortos e não o sabemos. A nossa morte não é a mera morte zoológica ou biológica, mas a morte em que mergulhamos na vida biológica, nessa preocupação excessiva com a nossa animalidade. A ressurreição de Cristo é o chamamento para uma vida plena aqui e agora. A morte de Cristo não é uma morte metafísica, puramente simbólica, mas uma morte no aqui e agora da História da humanidade. 

A historicidade dessa morte (mesmo que essa historicidade seja apenas uma mera crença não justificada) é o indício que nos evidencia que a ressurreição é aqui e agora, a ressurreição da nossa vida diminuída e diminuta, da nossa vida mesquinha e sem sentido. Ressurreição não é um mero facto. É um desafio que é lançado ao homem vivo, para que na vida, em cada um dos seus instantes, triunfe sobre a morte. Não se trata de retornar ao mesmo, ao idêntico, à pura biologia, mas de se diferenciar, tornar-se outro, tornar-se naquilo que se é, resolver o mistério da sua própria existência.

sábado, 7 de abril de 2012

Poemas do Viandante (259)


259.  MANET, CRISTO MUERTO Y DOS ÁNGELES

desprendido
dos cuidados do dia
o corpo entregue
à paz do sepulcro
um abismo de trevas
na voz do anjo

de respiração suspensa
espera a hora
em que não haverá hora
a luz iluminada
do mundo 
um traço de agonia
na cal da madrugada

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Poemas do Viandante (258)

Manet - Cristo escarnecido por los soldados

258. MANET, CRISTO ESCARNECIDO POR LOS SOLDADOS

a luz mais pura
sob a noite

frágil
na solidão

ferida
na dolorosa dor

aberta para 
o mar da criação

Arvo Pärt, St. John Passion


Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Haikai do Viandante (62)


cai branca a neve
frágil musgo linho ou seda
veludo tão leve

Poemas do Viandante (257)

Monet - Springtime

257. MONET, SPRINGTIME

a breve ventura
desliza

sombra
promessa
campos verdes

e o amor
sempre regressa

quarta-feira, 4 de abril de 2012

A experiência da Verdade

Kiss of Judas Iscariot, anonymus of the 12th century, Uffizi Gallery, Florence


O Filho do Homem segue o seu caminho, como está escrito acerca dele; mas ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue. Seria melhor para esse homem não ter nascido. (Mt 26:24)

Esta passagem do Evangelho de Mateus coloca um problema de difícil solução, a aporia do livre-arbítrio. A escritura determina o caminho do Filho do Homem, o seu destino: o ser entregue. Esta determinação choca com a pressuposição do livre-arbítrio daquele que O vai entregar. A pena, em forma de ameaça, subjacente à frase "Seria melhor para esse homem não ter nascido" só é compreensível no âmbito da liberdade da vontade. Como conjugar a determinação do destino de Cristo com o livre-arbítrio de Judas Iscariotes? Se este fosse efectivamente livre a entrega do Filho do Homem era meramente ocasional, dependente da liberdade da vontade de Judas. A salvação seria meramente contingente e não decorreria de uma necessidade lógica da história da salvação.

O problema surge da tentativa de interpretar racionalmente o versículo, de submetê-lo à lógica apofântica, onde os juízos devem obedecer aos princípios lógicos da identidade e da não-contradição. O horizonte do nosso entendimento permite perceber a indeterminação quântica, o determinismo presente na física clássica e o livre-arbítrio do agir humano. Estes três estratos do real não são, para o nosso entendimento, incompatíveis. A grande dificuldade sentida reside na compatibilização da sobredeterminação providencial (aquela que determina, segundo a escritura, a entrega do Filho do Homem) e a liberdade humana.

Se dermos um passo para fora da tradição ocidental talvez possamos encontrar um caminho de resposta. Para o Budismo-Zen um koan é uma pequena narrativa ou, mesmo, uma simples questão que, à luz da razão, é impossível de compreender. A resposta racional é sintoma de uma mente não iluminada. Os koans são dados, pelos mestres, aos discípulos como caminho de meditação cuja finalidade é a iluminação. A verdade não é dada pela razão mas pelo transcender dos limites desta. Ora o versículo de Mateus constitui um verdadeiro koan. Isto não significa qualquer tipo de influência de uma tradição sobre a outra. Significa apenas que há algo no cristianismo que não se dirige à nossa razão, a não ser de forma secundária. Esse algo apresenta-se como um caminho de meditação. Esta não significa encontrar uma explicação racional para a aporia, mas fazer a experiência da verdade que ali se revela e, ao mesmo tempo, se oculta. A verdade de Cristo e do cristianismo será menos a verdade de proposições lógicas e mais a verdade de uma experiência existencial. Não disse Ele que era a verdade, a via e a vida?

terça-feira, 3 de abril de 2012

Poemas do Viandante (256)

Monet - La Plage à Sainte Adresse

256. MONET, LA PLAGE À SAINTE ADRESSE

a melancolia
dos dias de praia
solidão partilhada

nuvens e cinza
no desejo desejado

o teu corpo arde
barco solitário
na areia da tarde

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Pobres sempre os tendes

encontrado aqui

De facto, os pobres sempre os tendes convosco, mas a Mim não me tendes sempre (Jo 12:8).

Tratará este versículo do Evangelho de João da facticidade da pobreza? Estaria Jesus a informar os circunstantes acerca das ilusões existentes nas futuras, embora ainda muito longínquas, políticas sociais de erradicação da pobreza? Estaria a reafirmar como inelutável - uma espécie de condenação ontológica - a pobreza entre os homens. Se assim fosse, estar-se-ia a reduzir os textos evangélicos a uma espécie de manual de sociologia e de ideologia política. Não é nestes jogos de linguagem, para utilizar a expressão de Wittgenstein, que as palavras evangélicas se devem integrar e ler.

Se as colocarmos no âmbito da sotereologia, no jogo de linguagem da salvação, elas terão uma leitura mais pertinente e adequada. Podemos ousar ler o versículo da seguinte maneira: cada um de nós terá sempre em si os pobres, aquilo que é ontologicamente diminuído, aquilo é eternamente um ser e um não ser, uma existência precária e efémera. Os pobres não nos são exteriores, não são pobres sociais, gente sem bens materiais, mas aquilo que em nós nos desvia de algo mais essencial, da riqueza imperecível e eterna. Os pobres em nós podem inclusive ser as riquezas materiais, os bens intelectuais, a glória vinda da honra e da fama. Os pobres são as nossas múltiplas inclinações para o efémero, o inconsistente, a ilusão.

Esse que nem sempre temos também não é alguém exterior, mas o que está no mais fundo de nós. Mas esse «a Mim não me tendes sempre» não é o prenúncio da morte de Jesus? Sim. Mas o texto evangélico não é apenas - ou não é essencialmente - uma narrativa de factos históricos. Aquele que não temos sempre é, paradoxalmente, O que está sempre no mais fundo de nós mesmos, O que a nossa preocupação com os pobres - no sentido acima referido - nos faz perder constantemente. A semântica  do versículo joga-se nessa tensão entre pobres e Mim, entre a pobreza da nossa materialidade e a riqueza do espírito que nos habita. Não, por acaso, o contexto evangélico (Jo 12: 1-11) contrapõe o dinheiro para os pobres e o dinheiro gasto em perfume, com que Maria perfumou o Senhor. A nossa riqueza, isto é, a nossa atenção e o nosso cuidado deve ser dado ao Espírito que é a verdade mais funda que exista em cada ser humano.

domingo, 1 de abril de 2012

Haikai do Viandante (61)


a chuva chegou
lenta ave de primavera
e a terra cantou