sábado, 11 de fevereiro de 2012

Turbulências


A palavra turbulência tem, na sua pluralidade semântica, uma feliz capacidade de captar certas fases da vida humana. Por um lado, ela remete para a dimensão psicológica do desassossego e da perturbação; por outro, ela descreve, ao nível da Física, os movimentos irregulares dos fluidos, nos quais as diferentes partículas que passam em determinado ponto podem variar, no tempo, em grandeza e direcção. Há momentos da vida que ao desassossego ou perturbação do espírito corresponde uma conduta irregular do corpo - de um corpo que nessas horas se fluidifica -, como se essa irregularidade e variabilidade direccional e essa perturbação se reforçassem mutuamente. Será um exercício inútil determinar qual dos fenómenos é causa do outro. A sua concomitância mostra antes a unidade do espírito e do corpo. Mais importante que isso, porém, é perceber o que significa essa turbulência que por vezes atinge o ser humano. Que provações lhe são propostas? Que experiências se abrem ao corpo e ao espírito? O que, vindo de fora, pretende romper a imanência em que nos colocamos e protegemos da vida? A turbulência é sempre um sinal da transcendência, um apelo à abertura. Quem não se recorda da turbulência que atingiu Paulo de Tarso na estrada de Damasco? Por vezes, somos levados a considerar que o episódio paulino como algo excepcional. Contudo, cada ser humano passa inúmeras vezes por essa experiência da turbulência sem reconhecer que se encontra na sua estrada de Damasco.


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (43)

daqui

ao entardecer
silêncios e pedras cantam
a luz ao morrer.

A viagem como metamorfose existencial


Pois não são as obras que nos santificam, somos nós que devemos santificar as obras. Quão santas possam ser as obras, elas nunca nos santificarão enquanto obras. Contrariamente, na medida em que possuímos um ser santo e uma natureza santa, somos nós que santificamos todas as nossas obras, quer se trate de comer, de dormir, de velar ou de fazer seja o que for. [Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels, IV]

O texto de Eckhart, apesar da provecta idade, pode ainda surpreender. Desloca a questão da santificação do domínio da moral para o da ontologia. Não se trata daquilo que fazemos mas daquilo que somos, não se trata da intervenção no mundo, mas da conversão existencial, da metamorfose ontológica. Trata-se que o homem, no seu ser e no seu fundo, seja perfeitamente bom. Dito de outra maneira, a experiência da bondade transforma a minha natureza. Mas essa experiência da bondade é dada pela abertura a Deus. Como Eckhart explica no ponto V dos Entretiens Spirituels, essa experiência implica que todos os nossos esforços tendam a compreender a grandeza de Deus, que tudo o que há em cada um seja voltado para Ele. O importante deste texto eckhartiano reside na focalização central da vida religiosa. Esta não está centrada nas regras morais, mas na experiência existencial de uma transformação de si à luz do ser divino. 

A qualidade moral das nossas acções não reside no facto de elas serem um caminho para a santidade. Estas acções, as que pretensamente santificariam os homens, como dirá, séculos depois, Kant, não têm qualquer valor moral. As boas acções são aquelas que resultam da bondade do próprio ser que as pratica. É ele que santifica as acções e não estas que o tornam santo. É verdade que, na economia global da vida em sociedade, é bom que as acções praticadas pelos agentes tenham uma aparência de bondade, mesmo que sejam praticadas por alguém que não se confrontou, ou nem pensa confrontar-se, com a metamorfose do seu próprio ser. Mas na economia da viagem que cabe a cada viandante efectuar, essas acções não possuem qualquer utilidade efectiva, podendo mesmo ser um obstáculo ao caminho. A viagem é uma experiência existencial e não uma aplicação ritualizada de mandamentos morais.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (42)


suspensas do tempo
as nuvens parecem barcos:
vogam num lamento

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (41)


neve na floresta
e o lago gelado espelha
o fulgor que resta

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (40)


Vida luminosa
ergue-se na alma nocturna
fria e majestosa.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (39)

(imagem daqui)

No vazio deserto:
pó, ervas, restos de pedra,
de Deus já tão perto.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (38)

(imagem daqui)

Sobre o chão, a neve
esconde a frágil vida
que na terra ferve

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (37)

(imagem daqui)

Terra pelo chão
na floresta encantada
chama a solidão.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Haikai do Viandante (36)

(imagem daqui)

Bruma e nevoeiro
traçam no centro da vida
o fim derradeiro.

Vertigem

Esta indecisão que de tudo se apodera, esta sombra que cai sobre os dias, esta neblina que se cerra sobre o olhar. Como é sombria a luz natural da razão. Estranho lugar é o do homem, a meio caminho entre terra e céu. Os olhos erguem-se para o alto, mas o corpo submete-o à lei da gravidade. A vertigem que de mim se apodera não é mais que a luta entre duas naturezas que há muito perderam a harmonia. Como pode a razão iluminar aquilo que os deuses obscurecem?

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (35)

(imagem daqui)

um céu de veludo
abre-se ao clarão da noite
luminoso e mudo.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Pobre de espírito

(imagem daqui)

Vejam, nunca até agora, nesta vida, alguém abandonou as coisas ao ponto de nada mais ter para abandonar. São raras as pessoas que têm isso em consideração e se conformam com tal coisa. Compensação verdadeiramente equitativa e justa: tanto quanto tu sais de todas as coisas, tanto quanto sais verdadeiramente de tudo o que é teu, tanto, nem mais nem menos, Deus entra em ti com tudo o que é seu. [Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels IV]

Onde, nesta curta passagem de Eckhart, encontramos um lugar para a fé? O místico renano não fala de nenhuma das virtude teologais, não sublinha um dogma, apenas propõe uma forma de agir. Desapropriar-se de si, abandonar tudo o que é tido como seu, quebrar os laços psicológicos do desejo com as coisas, consigo mesmo e até com o desejo de salvação. Abandonar significar abandonar radicalmente. Mas nunca, nesta vida, ninguém se abandonou ao ponto de não ter mais nada a abandonar. A fé reside neste abandono radical, reside na certeza de que cada vazio do espírito nascido do abandono é preenchido pela entrada de Deus. Abandonar-se significa ser pobre de espírito. Uma pobreza radical. Assim como é no presépio de Belém que Cristo nasce, é no mais vazio do espírito que Deus encontra o seu presépio, e ocupa o espaço que a pobreza lhe proporciona. A pobreza espiritual - que não é estupidez ou falta de inteligência - é a virtude essencial no caminho de qualquer viandante. A fé não está na ligação afectiva a uma imagem mais ou menos abstracta ou mais ou menos infantil da divindade, mas no abandono de si à expectativa da chegada de Deus.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (34)

(imagem daqui)

Traço na planície,
um ribeiro cruza a terra:
luz p'la superfície.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (33)

(imagem daqui)

Inverno sombrio
esquece o calor da terra.
Assim nasce o frio.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (32)

(imagem daqui)

entre noite e trevas
rompe-se o firmamento:
na dor nasce a luz.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (31)

(imagem daqui)

Os prados em fogo
rasgam a terra para a erva
germinar de novo.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Da Vontade e da vontade própria


Aquele que quer começar uma nova vida ou uma actividade deve ir ao seu Deus e pedir-Lhe, com muito fervor e um completo recolhimento, para regular tudo pelo melhor, tudo ao Seu gosto e como Ele o julgue mais digno; não deve nem querer nem procurar o seu próprio bem, mas unicamente a santa vontade de Deus, mais nada. E seja o que for que Deus então lhe envie, deve aceitá-lo como vindo directamente de Deus, compreendê-lo como o que melhor lhe pode acontecer e ficar inteira e absolutamente satisfeito com isso. (Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels, XXII)

O essencial da via reside nesta atitude de total e completa confiança nos desígnios de Deus. Essa confiança, porém, significa o abandono de toda a vontade própria, a morte dessa vontade, e a pura aceitação do provir como palavra e vontade divinas. Este tipo de acção contemplativa, de uma acção que não espera senão o que a Vontade lhe envia é o mais elevado grau de acção. A dificuldade reside, contudo, na erradicação da vontade própria, de uma vontade fundada no medo e no desejo.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (30)

(imagem daqui)

Tanta nostalgia
neste sonho onde a água
lembra a luz do dia.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (29)

(imagem daqui)

Crescem como dedos
sobre a verdura do vale
rochas e segredos.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (28)



Na aberta clareira,
p'la mão rasgada no bosque,
erva, sol e poeira.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Do medo e do desejo


(Imagem daqui)

O medo e o desejo são dois grandes obstáculos à vida do espírito. O medo conduz, muitas vezes, à fuga do mundo, ao retirar-se para um lugar especial onde não se possa, imaginariamente, ser atingido pela torrente da vida, a qual contém em si a própria morte. Temer o outro, o estranho, a exuberância da natureza, as ameaças da tecnologia. São múltiplas as figuras que parecem fundar o medo. Por seu turno, o desejo lança-nos sobre os seus objectos, incentiva a voracidade, o projecto de captura e de dominação da coisa ou da pessoa desejada. Entre o medo e o desejo, o espírito vive aterrorizado pelo fascínio que estas experiências exercem sobre ele. Ora o medo e o desejo contaminam a vida e a realidade com estas projecções da subjectividade, deformam-nas e tornam-nas uma cadeia que se abate inexoravelmente sobre a pessoa. A vida espiritual lida fundamentalmente com este medo e este desejo. Não se trata de eliminar o medo ou o desejo. Trata-se de os reconhecer naquilo que são e de reconhecer como eles pervertem a nossa relação com o mundo e os outros. Na religião, não se trata do medo da condenação eterna nem do desejo do paraíso, mas de fazer a experiência de religação com o absoluto, de  aproximação contínua à realidade tal como ela é, tal como ela nos solicita. Trata-se de uma atenção permanente à epifania do ser que se realiza a cada instante e da qual o nosso medo e o nosso desejo conduzem ou à fuga ou à tentativa de dominação.

Haikai do Viandante (27)

(imagem daqui)

ao fundo a serra
anuncia a treva que em breve
ensombrará a terra.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (26)

(imagem de vladstudio)

cai pelo jardim
a noite silenciosa
a arder em mim.

Do desapego

O desapego das coisas e das pessoas, essa exigência evangélica para quem pretende seguir o Verbo, não significa o real abandono dessas coisas e dessas pessoas. Significa muito simplesmente que o cuidado que coisas e pessoas exigem de nós deve ser considerado fora de qualquer interesse e expectativa subjectiva. Significa que eu não devo prender-me a nada a não ser ao Bem. Este desapego, porém, abre cada um de nós para as coisas como elas são e ensina-nos a lidar com elas na sua verdade. A vida do espírito não é uma fuga mundi e o desapego não é o afastamento das situações existenciais. Pelo contrário, a vida espiritual é um exercício contínuo de realismo e de atenção ao concreto da existência, é uma vida na verdade, que se torna possível pela eliminação do enviesamento que o ego traz consigo.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Poemas do Viandante (241)


241. POSEIDON


este canto
do vento
sobre a planície
é o murmúrio
de poseidon
ao subir
à superfície

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Poemas do Viandante (240)


240. ESTRELA POLAR

o mais antigo
e o mais remoto
vivem ainda
se colhes uma flor
ou deixas
o vento anunciar
entre nuvens
a alegria
da estrela polar

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (25)


sol, sombra e segredo
fazem da árvore floresta;
ali canta o medo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (24)

(Foto de Rui Bela)

ondas circulares
tecem, na seda do rio,
anéis e colares.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (23)


manhã de neblina
anuncia-me a tua mão
pálida e fina.