segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (35)

(imagem daqui)

um céu de veludo
abre-se ao clarão da noite
luminoso e mudo.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Pobre de espírito

(imagem daqui)

Vejam, nunca até agora, nesta vida, alguém abandonou as coisas ao ponto de nada mais ter para abandonar. São raras as pessoas que têm isso em consideração e se conformam com tal coisa. Compensação verdadeiramente equitativa e justa: tanto quanto tu sais de todas as coisas, tanto quanto sais verdadeiramente de tudo o que é teu, tanto, nem mais nem menos, Deus entra em ti com tudo o que é seu. [Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels IV]

Onde, nesta curta passagem de Eckhart, encontramos um lugar para a fé? O místico renano não fala de nenhuma das virtude teologais, não sublinha um dogma, apenas propõe uma forma de agir. Desapropriar-se de si, abandonar tudo o que é tido como seu, quebrar os laços psicológicos do desejo com as coisas, consigo mesmo e até com o desejo de salvação. Abandonar significar abandonar radicalmente. Mas nunca, nesta vida, ninguém se abandonou ao ponto de não ter mais nada a abandonar. A fé reside neste abandono radical, reside na certeza de que cada vazio do espírito nascido do abandono é preenchido pela entrada de Deus. Abandonar-se significa ser pobre de espírito. Uma pobreza radical. Assim como é no presépio de Belém que Cristo nasce, é no mais vazio do espírito que Deus encontra o seu presépio, e ocupa o espaço que a pobreza lhe proporciona. A pobreza espiritual - que não é estupidez ou falta de inteligência - é a virtude essencial no caminho de qualquer viandante. A fé não está na ligação afectiva a uma imagem mais ou menos abstracta ou mais ou menos infantil da divindade, mas no abandono de si à expectativa da chegada de Deus.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (34)

(imagem daqui)

Traço na planície,
um ribeiro cruza a terra:
luz p'la superfície.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (33)

(imagem daqui)

Inverno sombrio
esquece o calor da terra.
Assim nasce o frio.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (32)

(imagem daqui)

entre noite e trevas
rompe-se o firmamento:
na dor nasce a luz.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (31)

(imagem daqui)

Os prados em fogo
rasgam a terra para a erva
germinar de novo.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Da Vontade e da vontade própria


Aquele que quer começar uma nova vida ou uma actividade deve ir ao seu Deus e pedir-Lhe, com muito fervor e um completo recolhimento, para regular tudo pelo melhor, tudo ao Seu gosto e como Ele o julgue mais digno; não deve nem querer nem procurar o seu próprio bem, mas unicamente a santa vontade de Deus, mais nada. E seja o que for que Deus então lhe envie, deve aceitá-lo como vindo directamente de Deus, compreendê-lo como o que melhor lhe pode acontecer e ficar inteira e absolutamente satisfeito com isso. (Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels, XXII)

O essencial da via reside nesta atitude de total e completa confiança nos desígnios de Deus. Essa confiança, porém, significa o abandono de toda a vontade própria, a morte dessa vontade, e a pura aceitação do provir como palavra e vontade divinas. Este tipo de acção contemplativa, de uma acção que não espera senão o que a Vontade lhe envia é o mais elevado grau de acção. A dificuldade reside, contudo, na erradicação da vontade própria, de uma vontade fundada no medo e no desejo.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (30)

(imagem daqui)

Tanta nostalgia
neste sonho onde a água
lembra a luz do dia.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (29)

(imagem daqui)

Crescem como dedos
sobre a verdura do vale
rochas e segredos.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (28)



Na aberta clareira,
p'la mão rasgada no bosque,
erva, sol e poeira.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Do medo e do desejo


(Imagem daqui)

O medo e o desejo são dois grandes obstáculos à vida do espírito. O medo conduz, muitas vezes, à fuga do mundo, ao retirar-se para um lugar especial onde não se possa, imaginariamente, ser atingido pela torrente da vida, a qual contém em si a própria morte. Temer o outro, o estranho, a exuberância da natureza, as ameaças da tecnologia. São múltiplas as figuras que parecem fundar o medo. Por seu turno, o desejo lança-nos sobre os seus objectos, incentiva a voracidade, o projecto de captura e de dominação da coisa ou da pessoa desejada. Entre o medo e o desejo, o espírito vive aterrorizado pelo fascínio que estas experiências exercem sobre ele. Ora o medo e o desejo contaminam a vida e a realidade com estas projecções da subjectividade, deformam-nas e tornam-nas uma cadeia que se abate inexoravelmente sobre a pessoa. A vida espiritual lida fundamentalmente com este medo e este desejo. Não se trata de eliminar o medo ou o desejo. Trata-se de os reconhecer naquilo que são e de reconhecer como eles pervertem a nossa relação com o mundo e os outros. Na religião, não se trata do medo da condenação eterna nem do desejo do paraíso, mas de fazer a experiência de religação com o absoluto, de  aproximação contínua à realidade tal como ela é, tal como ela nos solicita. Trata-se de uma atenção permanente à epifania do ser que se realiza a cada instante e da qual o nosso medo e o nosso desejo conduzem ou à fuga ou à tentativa de dominação.

Haikai do Viandante (27)

(imagem daqui)

ao fundo a serra
anuncia a treva que em breve
ensombrará a terra.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (26)

(imagem de vladstudio)

cai pelo jardim
a noite silenciosa
a arder em mim.

Do desapego

O desapego das coisas e das pessoas, essa exigência evangélica para quem pretende seguir o Verbo, não significa o real abandono dessas coisas e dessas pessoas. Significa muito simplesmente que o cuidado que coisas e pessoas exigem de nós deve ser considerado fora de qualquer interesse e expectativa subjectiva. Significa que eu não devo prender-me a nada a não ser ao Bem. Este desapego, porém, abre cada um de nós para as coisas como elas são e ensina-nos a lidar com elas na sua verdade. A vida do espírito não é uma fuga mundi e o desapego não é o afastamento das situações existenciais. Pelo contrário, a vida espiritual é um exercício contínuo de realismo e de atenção ao concreto da existência, é uma vida na verdade, que se torna possível pela eliminação do enviesamento que o ego traz consigo.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Poemas do Viandante (241)


241. POSEIDON


este canto
do vento
sobre a planície
é o murmúrio
de poseidon
ao subir
à superfície

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Poemas do Viandante (240)


240. ESTRELA POLAR

o mais antigo
e o mais remoto
vivem ainda
se colhes uma flor
ou deixas
o vento anunciar
entre nuvens
a alegria
da estrela polar

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (25)


sol, sombra e segredo
fazem da árvore floresta;
ali canta o medo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (24)

(Foto de Rui Bela)

ondas circulares
tecem, na seda do rio,
anéis e colares.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Haikai do Viandante (23)


manhã de neblina
anuncia-me a tua mão
pálida e fina.

sábado, 31 de dezembro de 2011

Peregrinatio ad loca infecta

O ano vai acabar, mas a peregrinatio ad loca infecta parece não ter fim. É aquilo que compete a nós, seres mundanos. Por vezes, consolamo-nos com a ideia de estarmos no mundo mas não lhe pertencer. Mas isso é ainda uma idealização, uma fuga mundi, no sentido pleno da expressão. É nesse mundo que nos compete peregrinar, visitar os locais de perdição, os tomados pelos miasmas da doença, aqueles onde nos esquecemos de quem somos. Se fomos enviados a esta terra e a este mundo, não será uma blasfémia dizer que não lhe pertencemos? Um novo ano vai entrar, segundo o calendário que tomámos por nosso. Se for essa a vontade do Altíssimo, e enquanto essa vontade permanecer, continuará a pregrinatio ad loca infecta. A que outros lugares poderíamos nós, pobres mortais, peregrinar, presos à nossa finitude? Uma boa viagem.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Poemas do Viandante


234. POEMAS PARA AFRODITE (XV)

se descanso
no côncavo desvão
do teu ventre
oiço o rumor
do sangue
a arder
inundando a pele
de sede e calor.

Poema que encerra o ciclo Poemas para Afrodite. Este texto substitui o original, ainda perdido num disco rígido que se transtornou.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Haikai do Viandante (22)


Inverno esquecido,
em luminosa neblina,
pelo sol traído. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

J.S. Bach - Christmas Oratorio BWV 248



Para quem, em peregrinação, por aqui passe, o Homo Viator deseja um Santo Natal. Exultemos e regozijemo-nos pelo nascimento do Salvador. Na desolação do presépio, nasceu um menino, e como todas as crianças, esta que nasce incansavelmente há mais de dois mil anos representa a convicção de que a vida vale a pena ser vivida, que a morte será derrotada. Oiçamos a Oratória de Natal de JS Bach. Cada nota exalta o nascimento de Cristo.

[J.S. Bach - Christmas Oratorio BWV 248 - Part I 'For the First Day of Christmas' - Mvt. I]

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Haikai do Viandante (21)


árvores, montanhas
sobre um fio de água sonâmbula:
ali a águia sonha.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Haikai do Viandante (20)


caminhos de terra
são rios de argila e calcário
no corpo da serra.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Haikai do Viandante (19)


manhã clara e breve,
onde as folhas d'outono
cantam ao de leve.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Haikai do Viandante (18)


abre-se a lua
sobre a noite sem mistério:
silêncio p'la rua.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Haikai do Viandante (17)


astro tão sombrio
a lua na noite escura:
musgo puro e frio.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Haikai do Viandante (16)

Le Merle Noir (Olivier Messiaen)

voa, no fim da tarde,
o melro negro anunciando
a noite que em ti arde.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Haikai do Viandante (15)


caída no chão,
ergue-se vermelha a rosa:
fogo e luz na mão.