domingo, 30 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

237. VIDA

a vida – a noite a trouxe ­–
um mistério
de silêncio
promessa de luz
cântico de água
no fogo do
pensamento

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Haikai do Viandante (8)


nas margens do rio
desliza feroz a mágoa - 
prisão e voragem

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Haikai do Viandante (7)


abre-se ao terror
da noite a velha árvore - 
murmúrios de luz

domingo, 23 de outubro de 2011

Haikai do Viandante (6)


Chuva de Outono
enche a noite de cansaço.
Um punhal na lua.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Um espectáculo odioso


A miserável morte de Muammar Kadhafi, mais uma das execuções, pela plebe em delírio, de inúmeros ditadores mais ou menos odiosos, a que tenho assistido ao longo da minha vida, deixa-me, como sempre, um traço de amargura no fundo do coração. Compreendo que numa cultura fundada na lei de talião se possa comemorar com exuberância este tipo de acontecimentos. Mas a minha consciência de ocidental, mesmo que o Ocidente tenha cometido inúmeras atrocidades, sente uma veemente repulsa por estas iniquidades. São duas as fontes culturais da minha repulsa. Por um lado, a ética da justa medida aprendida com os gregos. A justa medida, interpretada nos nossos dias, significa a sensatez da pena, a racionalidade de um processo jurídico a que o réu deve ser submetido, mesmo que ele nunca o tenha permitido aos seus adversários. Mas a lei da razão herdada dos gregos, na cultura Ocidental, foi enriquecida pelo convívio com a grande novidade cristã, o perdão do inimigo, a lei do amor como princípio fundamental das condutas individuais. Este é o núcleo duro dos valores éticos fundamentais do Ocidente. É este núcleo que deve ser cultivado quotidianamente, mesmo, ou ainda mais, numa sociedade que, como a nossa, está a perder o norte. A razoabilidade aristotélica e o sacrifício do Cristo são o suficiente para tudo julgar, condenar e perdoar. O perdão não significa a eliminação da pena, mas a sua razoabilidade e a sua limitação, de forma a que a pena não seja um acto de vingança. Kadhafi tinha direito àquilo que terá negado a muitos, a ser julgado por um tribunal independente, num processo justo.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

236. SERENIDADE

chegaram os dias propícios
a aragem toca
o arvoredo
um gato corre
e o sol recolhe-se
para lá dos montes

no silêncio da noite
respiro
e deixo vir a tua voz
cantar sobre a luz
que dardeja
a serenidade

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Últimos dias

Brjullow: Der letzte Tag von Pompeji


Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos. Porque haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afecto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela.  (S. Paulo, 2 Timóteo, 3: 1-5) 

A meditação sobre a expressão últimos dias é fundamental na tradição cristã. Se entendermos por últimos dias aquelas que antecedem a parusia de Cristo, a sua segunda vinda, então todos os dias são os últimos dias. A possibilidade do retorno de Cristo na alma do homem não é um acontecimento distante. Isso implicaria a temporalidade e o decurso histórico. Mas o fundamental não estará nesse fim da história, onde Cristo retorna, mas no que está para além da história e da temporalidade. Eternamente, Cristo está a retornar para julgar os vivos e os mortos. Por isso, a descrição paulina dos últimos dias aplica-se tanto à época em que viveu como à nossa, ou a qualquer outra. Esses últimos dias serão trabalhosos, pois a vinda de Cristo, a sua descida na alma humana é obstaculizada pelo amor-próprio nas múltiplas modalidades que Paulo de Tarso descreve. Vivemos, de facto, os últimos dias, e vivemos a corrupção fundada no egoísmo. Isso é verdade socialmente, mas também o é para cada um de nós. Daí, a necessidade da conversão do ego ao totalmente Outro, a esse vazio que espera o nosso vazio para o preencher.

domingo, 16 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

235. DESERTO

no desconcerto que são os dias
espero ainda um vislumbre
a força da água a correr
o vento vindo
do vazio

aí germina o deserto
e os cactos
e o amor que nasce
em quem toma
o deserto pela casa
onde nasceu

O templo vazio


O templo, no qual Deus, seguindo a sua vontade, quer poderosamente reinar, é a alma do homem. Deus a formou e criou justamente bem igual a si mesmo, como lemos ter Nosso Senhor dito: "Façamos o homem segundo a nossa imagem e semelhança!" (Gn 1,26). E foi também o que ele fez. Tão igual a si fez a alma do homem que, dentre todas as esplêndidas criaturas por Ele maravilhosamente criadas, não há, nem no reino do céu nem sobre a terra, nenhuma que se iguale tanto a Ele, a não ser unicamente a alma humana. Por isso, Deus quer ter esse templo vazio, a ponto de ali não haver nada mais do que Ele só. (Mestre Eckhart, Sermões Alemães: Sermão 1 "Intravit Jesus in templum et coepit eicere vendentes et ementes")

Este excerto de Eckhart permite surpreender duas questões essenciais, ambas respeitantes à alma. Em primeiro lugar, é nela que reside a imagem e semelhança com Deus. Poderíamos contrapor a materialidade do corpo à alma, mas isso pouco nos ajudaria, para além de nos deixar reféns de um conjunto de dualismos de natureza aporética. A segunda questão poderá esclarecer esta. Deus quer a alma como um templo vazio. É no vazio que reside a natureza da alma. Esse vazio, devido à sua relação com o templo, é uma abertura. O que é solicitado ao crente - no fundo, a todo o cristão - é a abertura de si-mesmo. Mais que esta ou aquela acção, o que está em jogo é o esvaziar da alma de tudo o que indevidamente a ocupa, sejam preocupações mundanas, sejam vontades e ilusões próprias, seja, inclusive, o plano de salvação pessoal. O vazio é o vazio, e tudo o que se coloca nesse vazio torna-se num obstáculo à presença de Deus no templo. O que está em jogo então não é a minha salvação pessoal ou do mundo, ou seja do que for, mas a da presença do Criador na sua criatura. Essa presença é a própria salvação da criatura e luz para o mundo criado. Inopinadamente, o cristianismo, naquilo que nele é mais essencial, revela um estranho parentesco com disciplinas espirituais bem distintas dele, como o budismo zen ou o tibetano. Fazer em si o vazio para que o Vazio o preencha.

sábado, 15 de outubro de 2011

Destinos e limbos

O último poema da série Poemas para Afrodite, que deveria ter sido postado ontem, sofreu um singular destino. Encontra-se encerrado no limbo de um disco rígido externo ao qual o autor deste blogue deixou de ter acesso. Diversas tentativas, mesmo profissionais, para entrar em contacto com o conteúdo do disco mostraram-se infrutíferas. Naquele limbo digital encontra-se, entre muitas outras coisas, toda a produção poético do autor do blogue, da qual, para muitos dos casos, não há qualquer outra cópia. Há muito que deixei de escrever em papel, e aquilo que fora escrito em papel há muito que estava em suporte digital e o papel devolvido ao pó da terra.

Mais que digno de lamentação, o caso coloca uma questão interessante. Se nem uma empresa super-especializada em recuperação de dados, a que penso recorrer em breve, conseguir salvar o acervo do disco, então toda aquela poesia que lá se encontra, e da qual não tenho qualquer duplicado, desaparecerá. Será o sinal definitivo de que não merecia qualquer atenção. Veremos o que vai acontecer.