sábado, 16 de julho de 2011

Poemas do Viandante

181. ESPERANÇA

não esperar de deus
os dias de luz
a radiosa montanha
onde o pássaro
canta

não esperar de deus
a ventura da tarde
ou um sinal breve
na cruz erguida
no caminho

não esperar de deus
o vento suave
na sombra da árvore
a água fria
que a sede pede

não esperar de deus
e ir pela estrada
vazio e louco
seguindo-o no fundo
deste nada

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Poemas do Viandante

180. ESQUECIMENTO

o vasto incêndio
sobre o abismo
as flores secas
pelo cansaço
a pressa
que me toca

não tenho posteridade
nem quem
de mim se lembre
quando o vento
descer da serra
e tudo cantar
ao entardecer

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Poemas do Viandante

179. PROMESSA

a luz do meio-dia cai
sobre a floresta
de casas sombrias
vem do abismo
sem nome
e traz no seio
o rumor da saudade
a promessa de nuvens
na remota
e branca fímbria
com que debrua
o mar

terça-feira, 12 de julho de 2011

Poemas do viandante

178. DESAGRADO

isso que te desagrada
a conversa inútil
sobre o passar
dos dias
as mãos vazias
vindas em sussurro
o chegar agosto
e o sol que despeja
a alma
e abre o corpo
para a sede

o que te desagrada
não é isso
mas o andar frívolo
com que caminho
o silêncio quebrado
para não ouvir
o grito esquecido
sobre a ponte
o sino rasgado
sem as trindades
da infância

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Poemas do viandante

177. DISTÂNCIA

o brusco olhar
sobre a montanha
a água escorre
fragas penedos
um relâmpago
fende a neve
abre a brancura
ao chumbo
ao peso da ira
ao grito consentido
pela distância
do céu à terra
a ergues

domingo, 10 de julho de 2011

Poemas do viandante

176. O SENHOR


não é vã
a palavra
dita
sobre o rio
a água corre
uma ave canta
e o senhor
deixa vir
as nuvens
esconder a luz
do seu
calor

sábado, 9 de julho de 2011

Poemas do Viandante

175. ANJOS

os anjos
que descem
pela tarde
trazem
luz de pedra
no dia brando
que o corpo
encerra

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Poemas do Viandante

174. CAMPOS DE VERÃO

a essa distância
entre mar e água
entre a rosa
e o sombrio coração
tudo fica mais claro

os dias de julho
as buganvílias
o odor da terra
ferido pelo voo
de um pássaro

se abrires os olhos
e os cabelos voarem
ao vento
deixa o fogo apascentar
os campos de verão
 

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Teoria da leitura

Há aquela velha polémica de Platão contra a escrita, contra os livros, contra o silêncio ostensivo com que respondem se forem interrogados sobre o que pretendem significar. O enigma, porém, está do lado de Platão e não dos livros. Por que razão terá escrito tanto? Não é verdade que os livros, no seu silêncio, não respondam. Os livros são um corpo silencioso nas mãos do leitor, e como um corpo precisam de ser tacteados lenta e suavemente, precisam de ser tocados para se abrirem e deixarem ouvir a voz reservada que trazem dentro de si. Ler é um corpo a corpo, um jogo em que as peles se tocam para os espíritos se fundirem. Há porém livros tão especiais, pelo espírito que anunciam, que o leitor se mantém na distância a que se convencionou dar o nome de respeito. Fico sempre perplexo quando vejo alguém excessivamente jovem com certos livros na mão. A profundidade de algumas obras não se compadece com os verdes anos. O respeito, contudo, não é sintoma de ausência de desejo, de falta de vontade de abrir o livro, de o tactear, de deixar correr o corpo que lê pelas páginas que se dão à leitura. O respeito é apenas o sinal de reverência pelo mistério que se pressagia, o sintoma do apreço pela luz que emana do espírito que o corpo do livro suporta. Talvez o respeito esteja ligado ao kairos, esse tempo oportuno que desce do espírito e toca os corpos, que vem do céu para iluminar a terra. O mundo vive um singular paradoxo relativamente à leitura. Ler tornou-se um imperativo generalizado, um indicador de desenvolvimento, um programa de acção. Mas a relação entre leitor e livro não é da ordem da moral, nem da economia ou da política. É uma relação presidida por esse estranho deus a que os gregos deram o nome de eros. O culto do deus – um deus impetuoso e intempestivo – exige essa especial reverência com que um corpo se deve abrir a outro, com que um espírito se funde noutro, com que um leitor se entrega nas mãos de um livro, com que certos livros se abrem para a leitura.

Poemas do Viandante

173. VERDADE

os dias ainda
parecem longos
a nuvem de calor
cobre-os
cola-se à paisagem
adormece
em sobressalto na noite

a verdade
– o corpo que espera
o tremor destes dedos –
canta
agora uma ave
um anjo inocente
a queda da luz
na planície
da solidão