quarta-feira, 22 de junho de 2011

Poemas do Viandante

172. SONHOS

as coisas simples
presas nos escombros da vida
– flores secas
cadeiras de lona
o velho ringue
vindo do tempo da infância –
renascem entre sonhos

a noite inquieta
os traz consigo
nos dias longos
de um verão sedento
e sôfrego
e ávido
de sombra e mar
 

terça-feira, 21 de junho de 2011

Poemas do Viandante

171. CANTO

a dorida tarde
poisa a mão
sobre o súbito
ondular
do teu ventre

e um canto
de alvoroço
vem dessa boca
soprar fogo e luz
no baldio âmbar
do coração

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Poemas do Viandante

170. MANHÃ


a onda fria vem
toca-te
abre-te
pétala soprada
rosa pura
pura e leve


tão leve
o tremor
sobre o mar
tão leve
a flor
ao vento
tão leve
a névoa
ao cantar


tão pura
a manhã
desenhada
em teus lábios
esperando luz
e tormento


sábado, 4 de junho de 2011

Poemas do Viandante

169. MEMÓRIA
 

frágil como
o voo de um pássaro
a memória
anseia a penumbra
na casa breve
em que um corpo
por outro
em desassossego
espera


sábado, 28 de maio de 2011

Incomodidade e verdade

Volte-se à temática do post anterior, à questão da suspensão da acção. Se recupero uma imagem global da minha vida, constato que, apesar do envolvimento num certo número de actividades e de projectos, a acção sempre me pareceu estranha e contrária à minha índole, algo que, de certa forma, me fazia sofrer. Não é uma dor forte, antes uma incomodidade. O agir é a inscrição de objectivos interiores na exterioridade, no curso do mundo. Não é apenas o incómodo pessoal, mas o incómodo que a minha presença no mundo pode causar aos outros. Daqui a instantes (cerca de duas horas) irei lançar um livro, um conjunto de crónicas escritas em jornal de província, mas esse acto de lançamento é-me completamente estranho, sinto-o como se quisesse impor algo a alguém. A minha expectativa, que por certo será confirmada, será que não haverá grande razão para a incomodidade, devido à mais que provável ausência de público. Mas o simples acto social de chamar pessoas para lhes anunciar algo de meu gera incomodidade. O enigma para mim reside na origem e na verdade desta incomodidade.

Hipnose

Há uma linha de continuidade que perpassa por toda a vida. Muito cedo descobri um certo prazer em observar o escoar do tempo, de um tempo necessário à realização de uma tarefa, de um dever, de qualquer coisa que o mundo requeria de mim. Não fazer o que se exigia ou exige, mas interpor entre mim e a tarefa um espaço hipnótico, espaço que salta para dentro do corpo, se apossa da vontade e suspende toda e qualquer acção. Quantas vezes me perguntei se haveria em mim uma vocação contemplativa ou se não sofreria de uma patologia? O ver o tempo escoar, o deixar-se seduzir por irrelevâncias, o estreitar até à angústia a possibilidade de realizar um certa tarefa, tudo isto não será um sintoma patológico? Se aprofundo a arqueologia, descubro no início da escolaridade esse processo, esse estar fora da corrente da vida, descubro a sua natureza hipnótica. Compreendo, também, que ele se manteve inalterado desde esses tempos. Ao pensar agora sobre o assunto, parece-me claro que o processo já deveria ser anterior, bem anterior, ao início da escolaridade, tendo-se apenas manifestado aí devido a esse ser o momento onde o tempo, através da figura dos deveres a realizar, toma forma perante o espírito. Não se trata de pura procrastinação, pois nesta ainda está presente a intencionalidade de realizar a acção, embora mais à frente. O que sinto, porém, é um estranhamento perante aquilo que há que fazer. Esse estranhamento depressa se transforma em indiferença. O resultado é deveras extraordinário. Se há um momento no processo onde o espírito se sente angustiado pela não realização do que haveria a realizar, a verdade é que o resultado final, a não consumação das tarefas, a não realização de um objectivo, nunca gerou em mim qualquer sentimento de culpa, nem qualquer tendência depressiva. Apenas incomodidade, mais perante os outros que perante mim. Na realidade, esses imperativos que a vida impõe nunca se transformaram, efectivamente, em imperativos íntimos. A clivagem entre a intimidade e a exterioridade, coisa muito menos comum do que se supõe, criou em mim um espaço hipnótico que tende a anular a acção e talvez seja um perigo para o espírito contemplativo. Pior, e se o meu anseio contemplativo não passa de uma ilusão?

domingo, 22 de maio de 2011

Esperar

Por vezes, sem algo que o anuncie, tudo se torna sem sentido, como se de dentro de vísceras invisíveis viesse sobre a vida um cheiro putrefacto a nada. Não a um nada que indique a plenitude da ausência de odor ou gosto, mas de um nada que toma as células por dentro e as dissolve, corrompendo a vontade, liquefazendo os neurónios, tomados agora por uma sonolência sem fim. Como se abre o ser para que isto entre em nós? O ridículo. Tudo se torna risível e qualquer pretensão, gesto, desejo, mostra de nós o burlesco. Esperar a graça, desesperar por ela, ser incapaz de levantar a voz ao Alto. Dormir dias sem fim, deseja o corpo, reivindica, absurdo e ousado, o cérebro, condescende um coração mole. Dormir como se nada importasse. No silêncio da noite, erguer os olhos ao céu estrelado e esperar que a ferida se feche e uma voz ressoe no fundo do ser.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Poemas do Viandante

168. DESENHO


no salitre da parede
desenho-te o corpo
batido pelo vento
desenho-te a rosa
a florir no ventre
desenho-te os lábios
cantando o desejo
desenho-te a mão
perdida nestes dedos

domingo, 10 de abril de 2011

Poemas do Viandante

167. TUDO ISTO

o musgo no tronco
da árvore
pássaros em revoada
sobre telhados
a mão pousada
na inocência do olhar


a beleza de tudo isto
nunca cansa
dizes
enquanto a água vibra
na imensidão silenciosa
da tarde

terça-feira, 29 de março de 2011

Poemas do Viandante

166. A CATEDRAL

a límpida catedral
seda e água
lugar de erva
musgo e fogo

anjo que toca
ao quebrar da noite
os ombros
- meus teus -
estremecidos
pelo fervilhar do frio
           da pedra cai