segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Poemas do viandante

134. ROUBO

definha a rosa
se o verão
me roubar
dia e noite
a rendição
desse olhar

Do ponto de partida

Múltiplas são as armadilhas que espreitam o caminho do viandante. Uma das mais obstinadas é a do sentimento de necessidade de um princípio ou ponto de partida. Esse sentimento de necessidade extrema de um princípio seguro obsidia aquele que caminha. Quando se caminha há a estranha sensação de incompletude, de falta, de uma falta originária. A inquietação dissemina-se e o viandante não sabe onde colocar os pés nem qual o lugar que ocupa. Esse sentimento de falta de um princípio toca toda a viagem, fazendo com que ela seja percepcionada como coisa pouco sólida, pois não existe a solidez de um fundamento. Em vez de caminhar, ele fica preso na busca desse princípio originário, desse alicerce sólido que lhe permitiria caminhar com toda a segurança. Mas tudo isto é mera distracção, fuga perante a realidade. E a realidade é crua: não há fundamento, nem ponto de partida, nem solidez ou segurança. A viagem não começou nunca, apenas estamos já nela e não há companhia de seguros que nos assegure um destino ou a tranquilidade da marcha. Há apenas o entregar-se a ela, puro e livre.

sábado, 11 de setembro de 2010

Poemas do viandante

133. DESEJO

furtivo
o nome
que empunhas

crua adaga
que te abre o corpo
para o desejo

nem a luz
o apaga

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Poemas do viandante

132. DISTÂNCIA

o delicado traço
com que desenhas
a palavra

o âmbar inquieto
que ilumina
o coração

assim nasce
a irremediável
distância

que torna perto
a luz que se abra
na escuridão

domingo, 5 de setembro de 2010

Poemas do viandante

131. PROMESSA

até onde chegarão
estas palavras

haverá peso
dentro delas
que as adormeça
ao caminhar

haverá uma promessa
de luz sobre o pântano

a bandeira desfraldada
anuncia o súbito vigor da maré

sábado, 4 de setembro de 2010

Poemas do viandante

130. SE…

a margem infestada
de canas
um barco presume
o restolhar das águas
a noite em flocos
de trigo

se tudo ainda cantasse
ou se as rosas abrissem
o dia pelo cheiro

não haveria pó pelo chão
ou um punho cerrado
coberto pelo ouro
sedicioso
dessa boca fechada
sobre a solidão

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Poemas do viandante

129. A CASA

deste-me uma casa
por desabrigo
ali durmo esperando
que portadas
se abram ou fechem
segundo a vontade
de um senhor
sem nome sem lei
velho arconte
do lago e do rio
das flores abraçadas
pelas mãos recalcitrantes
das carpideiras

deste-me uma casa
nela espero
transido de frio
olhos coagulados
espiões sombrios
olham de longe
ou passam velozes
em relâmpagos de cinza
aí pende o relógio
a casa que me deste

domingo, 29 de agosto de 2010

Poemas do viandante

127. TEMPO (4)

regato arruinado
o jardim
esquecido
sob a sombra
de uma pedra
o granito

se grasna um corvo
se a noite ondula
se a tua voz se cala

rosa
branca rosa
que ave te roubou
o jardim materno

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Poemas do viandante

126. TEMPO (3)

o murmúrio da erva
na terra a arder
a porta que se abre
quando chamas
sombra da sombra
o que resta do coração

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Poemas do viandante

125. TEMPO (2)

a friagem
o outono a trouxe
branca
ilha de sal
e cinza
e calcário

fruto caído
no refúgio
esquecido do
calendário

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Poemas do viandante

128. A CANSADA MÃO

exausto chegou
o viandante
a chuva sobre os ombros
um vento de floresta
zune nos ouvidos
e o rumor de todas as
cidades
aberto como um punho
de mirtilos e framboesas
a escorrer da tua boca

de que vale a viagem
se o silêncio
pontua a sombra
que desce nesses olhos
e vela a flor
que o verão escondeu
sob os seios
que se arrancam
à cansada mão
que deseja

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Poemas do viandante

124. TEMPO

uma ruga
no silêncio da areia
a lágrima caindo
o dedo decepado
do verdugo

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Poemas do viandante

123. ROMÃ

o resto de romã
a arder na boca
a madeixa
tocada pelo vento
o silêncio entreaberto
dos lábios

tudo isso
testemunho
se aguardo
o toque dos sinos
num mar de lilases
e cristais de seda

um cão uiva
o coração afogado
na boca de lilás
nos lábios presos
ao fértil anoitecer
da breve romã

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Poemas do viandante

122. INVERNO

o crepitar da sombra
abre uma rua
de luz sob o olhar
com que incendeias
o mundo

casas árvores um rio
tudo arde na encosta
do inverno que
se anuncia
coração tolhido
pela cor extasiada
do frio

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Poemas do viandante

121. LINGUAGEM

a linguagem
flor obscura
que me atormenta
abre-se tempestuosa
no rumor do meio-dia

como pétalas
caem palavras
constelações de letras
um suspiro de algas
a breve folha da laranjeira

na névoa
agora desfiada
resta o eco de um nome
promessa de areia
na penumbra dos sentidos

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Tudo o que não sou

A suposição de ser alguma coisa, essa herança construída pela coligação entre as gramáticas indo-europeias e a filosofia grega - onde aquelas se pensaram e tomaram consciência de si -, é a imagem de uma infância nunca abandonada. Não daquela infância onde tudo é inédito e uma ânsia conduz à descoberta do mundo, mas da outra infância, concomitante dessa, aquela em que se luta desesperadamente para se convencer a si mesmo que se é alguma coisa, que se tem um lugar no mundo e uma voz que deve ser ouvida. Aquilo, porém, que poucos confessam é que esse convencimento é precário e que, no fundo de nós, uma dúvida persistente lança uma sombra sobre o que somos, o lugar que ocupamos, a voz que fazemos ouvir. Se deitarmos borda fora tudo isso, será que perdemos alguma coisa? Posso perder tudo o que não sou. Isso bastará? Não. É preciso ir mais longe. Não basta perder aquilo que não se é. É preciso perder aquilo que se é, mesmo que não saibamos o que somos. Aí haverá, então, a esperança de encontrar a voz do coração. Não a do nosso, porque o coração que fala não tem proprietário. É só uma voz, vinda sabe-se lá de onde, que clama no deserto.

Poemas do viandante

120. A MINHA ALDEIA

a súbita fome
esse olhar que escondia
as últimas cerejas e
o cansaço de ser tão humano
disposto na luz e nas trevas
a mão hirta a rasgar oceanos

de joelhos na madrugada
deixo correr o silêncio
aí vazam os sinos –
um dia encheram de vida
o desvão da memória
a que chamo minha aldeia

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Poemas do viandante

119. A MAÇÃ

o voo da maçã
na história
daquela mão
dança como
a nostalgia
que chega
pelos dias
de setembro

se olhas
já não vês
imagens são
pequenos pontos
de erva e vento

neles
a cegueira cresce
inundando de luz
a maçã pousada
nessa mão

domingo, 25 de julho de 2010

Poemas do viandante

118. VIDA

cinza abre-se
na água
que corre
daqueles olhos

um sonho
o tempo de calcário
a flauta incendiada
onde repousa
a vida perdida
entre escolhos

sábado, 24 de julho de 2010

Poemas do viandante

117. FUTURO

o futuro não é a rosa
ou o silêncio seco
das tardes de verão

branco como um muro
de quinta
chega quando
as andorinhas partem
- sob a tua luz -
para a inquietação
do sul

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Poemas do viandante

116. ENIGMA

um fogo de ervas
no palácio
onde o rei
te espera

uma flor inclinada
como um enigma
na boca
da tarde

um traço de sombra
respira
no coração
que desperta

domingo, 11 de julho de 2010

Poemas do viandante

115. ÁRVORE

deixar vir
a árvore
com a sua
cegueira
espalhar
entre tufos
de joio
a sombra verde
do trigo

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Poemas do viandante

114. PALAVRA

a palavra
sombra
de água
no jardim
a que chamas
porto

navios
gaivotas
círculos
sobre os ombros
aí suportas
o mundo

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Poemas do viandante

113. SENTIMENTO

sentimento
luz de rosas
sobre terra
de cinza
vergada ao
vento

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Dessubjectivação

Um dia de calor. Tudo se torna mais difícil. Aquilo que se exige é agora, mais que em outros dias, um campo de negação de si mesmo, um território de oblação e sacrifício. Cumprir cada uma das tarefas, não esperando nada delas, mas oferecendo-as como aprendizagem do esquecimento de si. Uso a palavra dessubjectivação. Este cumprir do dever como uma entrega e negação da vontade própria é uma forma de dessubjectivação, um rasgar da máscara, um passo para além da ilusão da nossa substancialidade. A dessubjectivação não é obrigatoriamente, como muitas vezes acontece, uma alienação, um estranhamento. Pode ser um passo para a clareira onde O que não vemos se manifesta. No sacrifício das tarefas quotidianas encontramos um caminho, um difícil caminho para quem sente o apelo da quietude. Mas há que cumprir essa Vontade que não é a nossa.

sábado, 3 de julho de 2010

Poemas do viandante

112. FOLHA

a folha tocada
pelo silêncio
inclina-se
deixa o vento
passar por ela
suspende a noite
se a seiva
dos teus dedos
se demora nela

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Poemas do viandante

111. NOITE

um jardim
no silêncio do mar
a noite aberta
pela raiz
algas e mãos
a face lívida
na súbita
ondulação

aí me perco
para te escutar

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Poemas do viandante

110. CÂNTICO

tudo reverbera
fecho os olhos
e vejo-te
no cântico
que ao declinar
o dia traz

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Poemas do viandante

109. TARDE

a tarde sobre
a ravina
pássaros de papel
e sangue
a buganvília
na sombra
da qual
espero

terça-feira, 22 de junho de 2010

Sobre a morte de José Saramago

Nestes dias, aqueles que a morte de José Saramago ocupou, muitas coisas sem nexo foram ditas. Sublinho, no entanto, aquela que assumiu o cúmulo da irrelevância. Disse L'Osservatore Romano que Saramago "foi um homem e um intelectual de nenhuma admissão metafísica, ancorado até ao fim numa confiança arbitrária no materialismo histórico, aliás marxismo." Como é possível dizer uma coisa destas? Em primeiro lugar, porque o materialismo dialéctico e o marxismo não passam de metafísica, de uma dada metafísica materialista, mas ainda e só metafísica. Em segundo lugar e mais importante, porque, tendo em conta aquilo que li de Saramago, só a metafísica o parecia interessar.

Mesmo a blasfémia, se é que Saramago era um autor blasfemo, é um louvor a Deus. Mas a recorrência da temática religiosa nas suas obras, mesmo que sejam pequenas notas de raspão, é um confronto de uma subjectividade com o terrível silêncio de Deus. Em Saramago havia uma pulsão de neo-converso ao contrário. Era como se o escritor fosse uma espécie de Paulo de Tarso, mas aspirasse ser um João Evangelista ou, de outra forma, um daqueles monges do deserto que fazem a história inicial da mística cristã. Perante a impossibilidade, ele assumia-se então como um S. Paulo ainda quando tomava o nome de Saulo.

A obra e a personalidade do escritor são o exemplo de uma luta metafísica, uma luta trágica, e deveriam merecer uma atenção redobrada, em vez da lamentável nota de L'Osservatore Romano. Saramago é um exemplo de como a crença na subjectividade própria impede de escutar Aquele que fala no silêncio e na pobreza do deserto. A ânsia de encontrar Deus, de o fazer manifestar-se, e a ânsia de salvar o ego tolheram em Saramago o caminho, transformaram-no numa luta titânica desvairada e fecharam-no dentro de si e no mundo, sempre um pequeno mundo, por amplo que seja. Há aqui mais do que um simples negador, há aqui um exemplo do destino do Ocidente. E não apenas daqueles que não conseguem silenciar-se, não conseguem silenciar a ânsia e o desejo que povoa o ego empírico, para que possam escutar Quem fala, mas também um exemplo de como aqueles que detêm o depósito da palavra já não a percebem ou não conseguem dá-la a perceber.