terça-feira, 19 de maio de 2009

Dissipação

Um dia entregue à pura exterioridade, uma quase impossibilidade de conjugar a pessoa em que sou com as exigências que a vida em sociedade impõe. Há muitas formas de calvário, e aquilo que para uns é motivo de prazer e felicidade pode ser para outros o transporte de pesada cruz. Mas agora que medito e olho para a dissipação do dia, descubro aí um passo mais para Aquele que ultrapassa as dores e os prazeres, ou que faz de cada dor e de cada prazer um caminho para Si. Como me atrevo a dizer que a dissipação é dissipação?

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poemas do Viandante (13)

13. sentado no molhe

sentado no molhe
ou viajando 
de cais em cais
oiço pássaros
conto estrelas

e nessa harmonia
o coração abre-se

uma sombra
um castelo
a fonte onde
a dor amanhece

Ser e querer

Deus é um prodígio: Ele é o que Ele quer, / E quer o que Ele é, sem medida nem finalidade (Angelus Silesius, O Viajante Querubínico I, 40). Eis a medida de todo o homem, Deus a perfeita coincidência do ser e do querer, uma coincidência incomensurável e gratuita. Neste espelho descubro os meus limites: não sou aquilo que quero e não quero aquilo que sou. Aqui nasce toda a moral: eu devo ser aquilo que quero. Mas se eu nada quiser e se eu nada for? Quem será em mim e quem em mim quererá?

domingo, 17 de maio de 2009

Morte e ressurreição

Morte e ressurreição, a estranha promessa sobre a qual um mundo foi construído. Mas a nossa estranheza repousa apenas na desatenção com que olhamos a vida. A cada instante vivemos a Sexta-feira Santa e o Domingo de Páscoa, a cada instante a morte é condição de possibilidade da ressurreição. A promessa da ressurreição não nasce, desta forma, de uma possibilidade metafísica, de uma especulação fundada na imaginação, mas da pura atenção ao acontecer. A ressurreição tem uma génese empírica, génese essa que nasce da contemplação do devir temporal. Onde o tempo actua, eu vejo a morte triunfar e no mesmo instante observo a ressurreição que aniquila morte. A ressurreição é a morte da morte, e a vida não mais do que esse perpétuo jogo, que o tempo traz e oculta.

sábado, 16 de maio de 2009

Poemas do Viandante (12)

12. caminho

caminho
como caminham 
os mendigos

porta em porta
à espera
de uma rosa
de um raio de luz
da noite

o que me leve para ti

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Saber demais

Saber da luz e ser cego, conhecer o som e ser surdo. Como fugir desta condição onde o não saber cresce dentro de tudo o que se sabe? Não vale a pena o estratagema do velho Sócrates, o só sei que nada sei. Não devia ele um galo a Asclépio? Não, eu sei de mais, todos sabemos demasiado. De tanto sabermos, já nada sabemos. É na luz que cresce a escuridão, é no som que cresce o silêncio. É no oásis que se eleva o deserto. Pudera eu aniquilar todo o meu saber e tornar-me cego e surdo no deserto ardente.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Poemas do Viandante (11)

11. caem palavras

caem palavras 
breves sinais

um retrato 
uma cifra
a noite rasurada 
pelo cais

A luz que oriente

Um dia de dissipação. O espírito arrastado pelo turbilhão dos devaneios, uma distracção contínua, uma impossibilidade de ir para o essencial. Um dia de seca e de aridez, um dia desperdiçado, um dia escuro e afastado da luz, de qualquer luz, por mais pobre e sumida que fosse. Mas este é apenas mais um dia entre os muitos onde a vontade se arrasta impotente, e nessa impotência se entrega à luxúria desenfreada do devaneio. O devaneio nasce do fascínio que certas coisas exteriores exercem sobre a imaginação, impedindo o espírito de operar. Mas por que será tão frágil o meu espírito, tão incapaz de resistir à tentação? É um espírito perdido, abandonado nos baldios da terra, sem rota nem estrela polar. Ainda virá uma luz que o oriente?

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Amor

Haverá amante e coisa amada? Enquanto um e outro suspirarem ainda o amor não estará presente. Quando este vem, já não há quem ame nem quem seja amado, mas apenas o puro amor subsiste, nessa indiferença tão diferenciada, nessa prisão tecida de liberdade.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Poemas do Viandante (10)

10. oiço o vento


oiço o vento 
pelos canaviais
um murmúrio
na cidade

alguém chega 
cantando
no vendaval 
da saudade

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O mar incriado

Mergulhar no mar incriado da divindade pura, diz Angelus Silesius. Apenas isso e nada mais do que isso. Mas como entrar nessa água? Saber-nos-emos despir para que o mar não nos confunda? Se se despir completamente, se tirar uma a uma as peças de roupa que o revestem e mascaram, haverá ainda uma distinção entre aquele que mergulha e a água desse mar incriado onde mergulhará? Despir-se de si, abandonar-se, tornar-se vazio; o mar aí estará no puro esplendor do que não tem começo nem fim.

domingo, 10 de maio de 2009

Poemas do Viandante (9)

9. falam poetas

falam poetas
do exótico fruto
e cantam
a seda do oriente

sonham sonhos
de veludo
e de tâmaras
a taça ardente

sábado, 9 de maio de 2009

Da conduta viciosa

Há na conduta viciosa qualquer coisa que merece meditação. Não refiro o vício nas suas dimensões moral e social, ou mesmo na dimensão ética, se distinguimos esta, de natureza mais pessoal, da moral, de natureza mais colectiva ou gregária. A dimensão que merece meditação é a do espírito. No vício, através dos processos de iteração inerentes à conduta viciosa, o espírito fecha-se nesse acto de pura repetição, já sem consciência, de uma conduta marcada pela necessidade. O vício começa então por ser uma prisão onde o espírito aliena a liberdade. Ao alienar a liberdade afasta-se da sua natureza. O vício antes de ser um problema do indivíduo na sua relação consigo e com os outros é um problema do espírito, que assim é negado. Mas por que há essa necessidade de alienar o espírito? Porque este é atraído por uma luz que o ultrapassa e lhe dá ser. Mas essa luz tão obscura e espessa, e ao mesmo tempo excessivamente luminosa, faz o espírito tremer. Perante este "temor e tremor", o espírito foge de si e defende-se na alienação do vício, isto é, da conduta que prende o espírito na terra estranha da necessidade e da pura repetição da nulidade. O vício é o exercício contínuo de fuga perante o único real efectivamente real.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Poemas do Viandante (8)

8. partiram

partiram
entre acenos
e gritos
na madrugada

os barcos iam
leves e serenos
a vida
menos que nada

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Poemas do Viandante (7)

7. esse olhar


esse olhar
onde pétalas
caíam

um rumor  
se acendia

inclinava-se 
para o meu
sem fronteiras 
sem melancolia

O mundo

O mundo não é uma ameaça à vida do espírito. Apenas a forma como se está no mundo a ameaça. Não vale a pena fugir para o deserto ou encerrar-se na clausura. Também aí está o mundo. Está, talvez, de uma forma mais aguda e dilacerante. O mundo é a habitação do homem e foi dado a este para que ele aí estivesse e permanecesse não num lugar hostil, mas como se estivesse em sua própria casa. Fugir do mundo é assim fugir da casa que herdámos. O problema que nasce então é o da forma como habitamos aquilo que nos foi dado habitar. A ideia de dádiva é já o primeiro sintoma de como devemos aí estar: cuidar do que nos foi doado. Mas esse cuidar não significa que o espírito se prenda à coisa doada, mas se erga ao doador e, na luz que deste emana, olhar cada gesto com que preenchemos o mundo.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Poemas do Viandante (6)

6. se uma folha breve

se uma folha breve
da árvore se vai

uma estrela treme
e logo logo cai

Estar em vigília

Thomas Merton diz, em Semences de contemplation, que "não esperamos na contemplação, evadir-nos da luta, da angústia ou da dúvida." Procurar o caminho do espírito não é uma estratégia de alienação. Se me ponho a caminho não é para fazer disso um analgésico para as dores que o mundo, ou a vida, ou as ilusões que eu próprio crio. Pôr-se a caminho é manter-se atento e desperto. Em vigília. Estar em vigília é abrir-se para o conflito entre a minha mundanidade e aquilo que está para além dela e nela se oculta. Estar em vigília é aceitar plenamente a angústia da incerteza ou o tormento da dúvida sobre o caminho que se tomou. O caminho do espírito não é uma diminuição da nossa natureza humana. Pelo contrário, é o começo de nos tornarmos verdadeira e completamente humanos.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Poemas do Viandante (5)

5. cai a flor

cai a flor 
da amendoeira
e nos barcos 
o pavilhão arvorado

se sabes a cor do tempo 
desenha uma flor
no oceano
da eternidade

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Eu não sou eu

Eu não sou eu. Terrível infracção do princípio de contradição. É por aqui que talvez comece o caminho. Ilógico caminho, dir-se-á. Sim, é ilógico o caminho que vai do eu que eu não sou para aquele que, não o sabendo, sou-o. Talvez toda a lógica, essa obra assente na tautologia da identidade e na exclusão da contradição, tenha por finalidade assegurar que esse eu que não sou pareça ter uma existência própria, e possua uma realidade efectiva. Mas a via verdadeira deverá começar pela contradição, pela negação de si, pela experiência de que não sou o eu que estou convicto ser. Não preciso de me afirmar nem de me confirmar. A única coisa que preciso é de desconfirmação. O medo, porém, dessa desconfirmação do meu eu é tanto que logo me agarro a ele e o exibo aos olhos dos outros para que eles o confirmem perante mim. Eu não sou eu, eis o terrível portal que temo passar. Para lá dessa limiar espera-me a escuridão ou a luz mais intensa.

domingo, 3 de maio de 2009

Poemas do Viandante (4)

4. faz do rio metáfora


faz do rio metáfora
e das águas metonímia

deixa a floresta
e cobre a face
de invernos a arder

ouve a voz do vento
e a noite
esquecer-se-á de ti

Liberdade

O espírito dispersa-se nos afazeres quotidianos, mas isto é apenas o sinal de um espírito ainda incapaz da liberdade. Que entender por liberdade aqui? Talvez um fazer como se não estivesse fazendo, um fazer desapegado e, ao mesmo tempo, atento ao que se faz e à fonte de onde jorra essa liberdade. O sentimento amargo de que, com as tarefas que o dever impõe, estamos a perder tempo, um tempo essencial, é ainda a ilusão de um espírito que se deixa prender nas artimanhas do eu. Fazer como se não se esperasse nada. Estar plenamente nesse fazer como na ausência do fazer. Mas o meu espírito ainda é incapaz de tal liberdade. A amargura é o sintoma dessa impotência e o sinal de que se está ainda demasiado preso ao mundo.

sábado, 2 de maio de 2009

Poemas do Viandante (3)

3. não tragas a razão para casa

não tragas a razão para casa
deixa-a vaguear pela tarde
sentar-se ao crepúsculo
gritar no terror da noite

não tragas a razão para casa

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O terceiro excluído

Se penso na alma cindida, nessa divisão que me opõe a mim mesmo, nesse acontecimento em que quero o bem, mas é o mal que pratico, fico perplexo. Não são dois aqueles que encontro em mim, mas três. Um que quer o bem que o dever traz consigo, o outro que, como Paulo de Tarso, pratica o mal que sempre acabo por fazer. Mas para além deles, desses que querem em mim ora o bem ora o mal, há um outro que nada sabe do bem e do mal e que vive na luz duma inocência que se inocentou. Só nesse sinto a força que pode soldar a alma e reconstituir-me numa unidade que a vida rompeu. Na lógica que triunfou, esse é sempre o terceiro excluído. Mas será a vida uma questão de lógica?

Poemas do Viandante (2)

2. tocada pela voz

tocada pela voz
a sombra 
dessa boca 
prende-me aos lábios 
que dizias meus

era o tempo 
em que tinha
corpo 
e na luz de julho 
o via como se fora teu

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Escrevo da desolação

Escrevo do sítio da desolação, não da desolação do corpo ou da alma, mas da desolação do espírito perdido num deserto tão cheio de gente. Sento-me e observo e espero que venha a mim aquilo que terá de vir. Mas tudo me dispersa e me envia para o excesso. Febril, oiço as vozes que cantam a Primavera, que teima em não partir. Para que quererás tu, pobre viandante, o calor do Verão? Não sabes o que sofres quando a temperatura cresce e a sombra, como num prolongado meio-dia, desaparece? Ainda agora, passados todos estes anos, nada sabes. Ficas a rememorar passados, a contar futuros que nunca virão, a perderes-te desse súbito presente que, mal irrompe, a sombra o traga. Escrevo da desolação desse meu espírito tão incapaz de olhar o que há para ver.

Poemas do Viandante (1)

1. chegará maio

chegará  maio
e o seu desamparo

na mão um fruto
hasteado ao vento

a pressa cansada
de uma metáfora

o corpo que se rasga
e abre para o verão

Terra da alegria

Quantas vezes o silêncio prolongado nada mais é do que a sombra do ruído? Há quantos dias ou meses não venho aqui? Perdi-lhe o conto e nem quero ver a data da última coisa que deitei neste mar de cinza. Terei esquecido a caminhada? Como seria possível fazê-lo? Apenas a dissolução da vontade tem crescido e o escrever tornou-se penoso. Olho a noite travestida de néon e vejo o desespero dos faróis a relampejar na avenida. Pequena cidade a minha, tudo nela tolhe o caminho. Aqui não ha quem peregrine. Mas que sei eu do mistério que há nesses outros todos que tenho vindo a desconhecer? Caminham como eu, por certo, e eu andarei tão perdido quanto eles. Mas andar perdido não é o destino daquele que ainda não chegou à terra da alegria?

segunda-feira, 30 de junho de 2008

O lugar da sombra que cresce

Quase um mês de ausência, como se me tivesse esquecido de mim. Talvez a escrita ainda seja uma ilusão a que me agarro com medo da viagem. Não há viandante que não tema a viagem, mas a ausência da escrita não é indicador seguro de estar a caminho. Apenas o esquecimento e o desleixo cresceram, inundaram o jardim de ervas e a tudo se apegou um ar de abandono. Paro e volto ao lugar onde estava, não há um mês, mas àquele que era meu há muito: o lugar da sombra que cresce.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Um mar agitado

Retorno à escrita. Estes dias de ausência foram também tempos de dispersão e esquecimento. Talvez o meu coração seja frágil e a vontade que me move fraca. Se procuro o caminho, por que motivo o ardor se esvai e tudo se prende aos pequenos nadas que os dias trazem consigo? Mais uma vez descubro o quanto não dependo de mim e que, se quero pôr mão na minha existência, tudo parece soçobrar num mar agitado e destituído de sentido.