terça-feira, 5 de maio de 2009

Poemas do Viandante (5)

5. cai a flor

cai a flor 
da amendoeira
e nos barcos 
o pavilhão arvorado

se sabes a cor do tempo 
desenha uma flor
no oceano
da eternidade

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Eu não sou eu

Eu não sou eu. Terrível infracção do princípio de contradição. É por aqui que talvez comece o caminho. Ilógico caminho, dir-se-á. Sim, é ilógico o caminho que vai do eu que eu não sou para aquele que, não o sabendo, sou-o. Talvez toda a lógica, essa obra assente na tautologia da identidade e na exclusão da contradição, tenha por finalidade assegurar que esse eu que não sou pareça ter uma existência própria, e possua uma realidade efectiva. Mas a via verdadeira deverá começar pela contradição, pela negação de si, pela experiência de que não sou o eu que estou convicto ser. Não preciso de me afirmar nem de me confirmar. A única coisa que preciso é de desconfirmação. O medo, porém, dessa desconfirmação do meu eu é tanto que logo me agarro a ele e o exibo aos olhos dos outros para que eles o confirmem perante mim. Eu não sou eu, eis o terrível portal que temo passar. Para lá dessa limiar espera-me a escuridão ou a luz mais intensa.

domingo, 3 de maio de 2009

Poemas do Viandante (4)

4. faz do rio metáfora


faz do rio metáfora
e das águas metonímia

deixa a floresta
e cobre a face
de invernos a arder

ouve a voz do vento
e a noite
esquecer-se-á de ti

Liberdade

O espírito dispersa-se nos afazeres quotidianos, mas isto é apenas o sinal de um espírito ainda incapaz da liberdade. Que entender por liberdade aqui? Talvez um fazer como se não estivesse fazendo, um fazer desapegado e, ao mesmo tempo, atento ao que se faz e à fonte de onde jorra essa liberdade. O sentimento amargo de que, com as tarefas que o dever impõe, estamos a perder tempo, um tempo essencial, é ainda a ilusão de um espírito que se deixa prender nas artimanhas do eu. Fazer como se não se esperasse nada. Estar plenamente nesse fazer como na ausência do fazer. Mas o meu espírito ainda é incapaz de tal liberdade. A amargura é o sintoma dessa impotência e o sinal de que se está ainda demasiado preso ao mundo.

sábado, 2 de maio de 2009

Poemas do Viandante (3)

3. não tragas a razão para casa

não tragas a razão para casa
deixa-a vaguear pela tarde
sentar-se ao crepúsculo
gritar no terror da noite

não tragas a razão para casa

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O terceiro excluído

Se penso na alma cindida, nessa divisão que me opõe a mim mesmo, nesse acontecimento em que quero o bem, mas é o mal que pratico, fico perplexo. Não são dois aqueles que encontro em mim, mas três. Um que quer o bem que o dever traz consigo, o outro que, como Paulo de Tarso, pratica o mal que sempre acabo por fazer. Mas para além deles, desses que querem em mim ora o bem ora o mal, há um outro que nada sabe do bem e do mal e que vive na luz duma inocência que se inocentou. Só nesse sinto a força que pode soldar a alma e reconstituir-me numa unidade que a vida rompeu. Na lógica que triunfou, esse é sempre o terceiro excluído. Mas será a vida uma questão de lógica?

Poemas do Viandante (2)

2. tocada pela voz

tocada pela voz
a sombra 
dessa boca 
prende-me aos lábios 
que dizias meus

era o tempo 
em que tinha
corpo 
e na luz de julho 
o via como se fora teu

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Escrevo da desolação

Escrevo do sítio da desolação, não da desolação do corpo ou da alma, mas da desolação do espírito perdido num deserto tão cheio de gente. Sento-me e observo e espero que venha a mim aquilo que terá de vir. Mas tudo me dispersa e me envia para o excesso. Febril, oiço as vozes que cantam a Primavera, que teima em não partir. Para que quererás tu, pobre viandante, o calor do Verão? Não sabes o que sofres quando a temperatura cresce e a sombra, como num prolongado meio-dia, desaparece? Ainda agora, passados todos estes anos, nada sabes. Ficas a rememorar passados, a contar futuros que nunca virão, a perderes-te desse súbito presente que, mal irrompe, a sombra o traga. Escrevo da desolação desse meu espírito tão incapaz de olhar o que há para ver.

Poemas do Viandante (1)

1. chegará maio

chegará  maio
e o seu desamparo

na mão um fruto
hasteado ao vento

a pressa cansada
de uma metáfora

o corpo que se rasga
e abre para o verão

Terra da alegria

Quantas vezes o silêncio prolongado nada mais é do que a sombra do ruído? Há quantos dias ou meses não venho aqui? Perdi-lhe o conto e nem quero ver a data da última coisa que deitei neste mar de cinza. Terei esquecido a caminhada? Como seria possível fazê-lo? Apenas a dissolução da vontade tem crescido e o escrever tornou-se penoso. Olho a noite travestida de néon e vejo o desespero dos faróis a relampejar na avenida. Pequena cidade a minha, tudo nela tolhe o caminho. Aqui não ha quem peregrine. Mas que sei eu do mistério que há nesses outros todos que tenho vindo a desconhecer? Caminham como eu, por certo, e eu andarei tão perdido quanto eles. Mas andar perdido não é o destino daquele que ainda não chegou à terra da alegria?