segunda-feira, 30 de junho de 2008

O lugar da sombra que cresce

Quase um mês de ausência, como se me tivesse esquecido de mim. Talvez a escrita ainda seja uma ilusão a que me agarro com medo da viagem. Não há viandante que não tema a viagem, mas a ausência da escrita não é indicador seguro de estar a caminho. Apenas o esquecimento e o desleixo cresceram, inundaram o jardim de ervas e a tudo se apegou um ar de abandono. Paro e volto ao lugar onde estava, não há um mês, mas àquele que era meu há muito: o lugar da sombra que cresce.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Um mar agitado

Retorno à escrita. Estes dias de ausência foram também tempos de dispersão e esquecimento. Talvez o meu coração seja frágil e a vontade que me move fraca. Se procuro o caminho, por que motivo o ardor se esvai e tudo se prende aos pequenos nadas que os dias trazem consigo? Mais uma vez descubro o quanto não dependo de mim e que, se quero pôr mão na minha existência, tudo parece soçobrar num mar agitado e destituído de sentido.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

O meu corpo

Uma tontura, uma espécie de volúpia a arrastar-me para o chão, um sentimento de estar desabrigado e impotente perante as forças que não controlo. Assim, de forma tão inopinada, um pequeno acontecimento físico não desencadeou apenas a preocupação com o que se está a passar, mostrou também os limites do homem. O próprio corpo é tão estranho que chega a parecer impossível dizer o meu corpo. Recolho-me em mim e não encontro casa alguma que seja a minha casa. Deixo-me e ir sabendo que nada sou e espero que Tu me ampares no caminho.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

O mar da eternidade

O tempo passa tão rapidamente entre os trabalhos que a vida traz, que parece nada já existir para além do tempo que passa. Pesados grilhões são o tributo ao ardil do relógio, obscura volúpia que nos suga para o interior vazio que o habita. Agora que cheguei aqui, peço ao silêncio redentor a carícia da solidão. Fecho os olhos e penso na luz que me habita, nessa palavra que proferiu o meu nome e me trouxe ao mundo. Esqueço-me do tempo e calo o coração ao mergulhar no mar a que, à falta de melhor, chamo eternidade.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Nas mãos da Providência

Há dias em que o coração é um lago vazio e o cérebro um punhado de terra amassada. O melhor seria então encontrar um espaço de solidão e silêncio, um lugar de esvaziamento da alma, de abandono de si, de entrega à Providência. Mas dizer isto é já um equívoco, pois o que poderá um pobre homem fazer a não ser entregar-se nas mãos da Providência?

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A tentação

A tentação possui uma curiosa fenomenologia. Começa por ser um fruto da imaginação. Esta imagina um objecto desejável, confere-lhe uma tonalidade apetecível, instiga os instintos para esse fim, ao mesmo tempo que dissolve a vontade e torna a razão numa coisa nublada e incapaz de julgar. Por vezes, suspende mesmo a razão em nome do impulso que habita a faculdade de desejar. A imaginação é então uma rainha despótica de um reino sem fronteiras, soberana sempre desejosa de alargar os seus infinitos territórios. Mas será assim tão soberana essa imaginação? Quem desencadeia nela as imagens tentadoras?

domingo, 25 de maio de 2008

O cativeiro

O mundo é como a caverna de Platão. Dentro dele há apenas prisioneiros, mas prisioneiros de uma ilusão tenebrosa. Que ilusão será essa? É a ilusão que nos torna prisioneiros da imagem que de nós construímos. Somos então habitantes de uma dupla prisão. O mundo e o eu que se ata aos seus desejos e à avidez com que quer tomar para si o que não pertence a ninguém. Mas a libertação não significa uma fuga ao mundo, mas renúncia às suas próprias ilusões, à sua mesquinhez, à avidez que tudo coloniza. Liberto de si, aquele que peregrina nesta terra liberta-se também do mundo enquanto cativeiro.

sábado, 24 de maio de 2008

Do sentido da amizade

Passar o dia com pessoas amigas e desejar a sua presença sem que isso desvie o olhar da presença do inefável. Não será que o inefável está já nessa presença nimbada pela amizade ou pelo amor? Por vezes, procura-se a amizade como fuga a si e à sua realidade, como alienação, estranhamento e esquecimento. Mas a amizade é um dom que recebemos e a sua natureza simboliza uma outra amizade que funda todas as amizades humanas. Na amizade pensamos na igualdade dos amigos e no carácter gratuito dessa benquerença. Se transportamos essas ideias para a amizade com o absoluto, perceberemos de imediato essa estranha relação que absoluto e relativo podem entretecer. Mas o sal de todas as amizades só pode ser um: a lealdade. Talvez não exista nada mais perverso no mundo do que a deslealdade e a traição aos amigos.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Não chamo por Ti

Escuto a tarde a tombar no reino da noite, oiço o rumor dos Teus passos se caminho esquecido de mim e por Ti me deixo conduzir. Abro o coração, o sangue flui tranquilo, e um silêncio de neve rodeia-me delicado, suave, mesmo se é pelo rude mundo que caminho. Não chamo por Ti, pois a minha voz não te alcançaria se já não estivesses nesse lugar de onde por ti chamaria.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Um espaço vazio

Tornar-me um grão de areia, um nada, um espaço aberto e vazio, um espaço onde o que vem de fora e o que vem de dentro circulam sem restrições. Somos nós que afastamos Deus do mundo ao encerrarmos a débil fronteira que cada um é. Quanto mais cerrada for, maior a separação. Medito, por vezes, nas palavras heideggerianas sobre o afastamento de Deus. Mas Deus não se afastou. Está onde sempre esteve, no íntimo de cada um. O Homem é o sinal de Deus no mundo, mas se cada um dos homens fecha o sinal que é, um espectador distante pensará que Deus abandonou o mundo à sua sorte. A verdade, porém, é que o jardineiro esqueceu a sua missão e concentra agora tudo em si. O mundo que era para ele é agora um mundo que é seu, um mundo reduzido à mera propriedade e ao arbítrio do suposto proprietário. Mas se o proprietário se abandonar, se se abrir como espaço, Deus e o mundo reatarão de imediato a ligação e a sensação de derrelicção perderá o sentido.