sábado, 10 de maio de 2008

A tempestade da dúvida

Há quem tenha uma fé substancial, uma fé capaz de mover montanhas, uma fé clara e distinta. Eu, porém, sinto-me atravessado pela tempestade da dúvida, da incerteza, da impossibilidade de me tornar num Atlas e carregar às minhas costas um mundo, tão pouco uma montanha. Se a fé é a crença e aceitação da revelação, a dúvida é a natureza do espírito que procura um caminho. Talvez a minha fé só possa nascer desse espírito que procura e a dúvida seja um sintoma da vida que cresce e se fortalece e na força que assim vai nascendo encontra a fidelidade ao que, na obscuridade, me chama. Talvez não haja verdadeira fé sem o tempero da dúvida. Quanto maior for uma, mais forte será a outra.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Da nostalgia e da saudade

Céu nublado, nuvens empurradas pelo vento, a chuva desabrida a cair para aquém da linha do horizonte. Assim como o céu mutável e inquieto, estou eu em contínua metamorfose. Agora sou leão, por vezes cordeiro, outras águia ou serpente, mas nunca criança. Perco-me nas mil transfigurações em que o espírito se ergue e cai e deixa de ver o rumo ou o horizonte. Quando a inocência se esvaiu, no lugar dela ficou, agora o sei, um desconsolo infinito e a sensação de que aquilo que se quebrou não poderá ser soldado. Daí nasce a nostalgia do que fui, mas a verdade é que nunca fui outra coisa para além do nada que sou. Talvez a nostalgia do passado seja apenas a saudade do futuro, a expectativa do vir a ser, talvez…

quinta-feira, 8 de maio de 2008

A fonte que mata a sede

Se pretender encontrar-me a mim mesmo, onde poderei descobrir esse fundo que me permite reconhecer uma identidade? Cada um dos meus traços, físicos ou psicológicos, é evanescente, mutável, redutível a nada. Essa aniquilação parece, então, ser o centro da minha identidade e cada um dos traços com que me apresento a mim ou aos outros não passa de uma máscara que esconde a ausência substancial de uma realidade. É nesse nada que deverei mergulhar, pois esta imersão é a aceitação plena daquilo que sou: nada, ou para o dizer de um outro modo: sou pó e ao pó tornarei. O nada, porém, deixa-me livre e é nessa liberdade que posso abrir-me para aquilo que em mim é mais do que eu. Uma substância? Uma coisa? Um objecto? Não, é um nada de onde as substâncias, as coisas e os objectos tiram a sua substancialidade, a sua coisidade, a sua objectidade. Procurar esse nada é procurar a fonte que mata a sede.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Abrir o espaço

Cada um deverá encontrar o seu caminho, mesmo que esse caminho seja obscuro e incompreensível. Ir para além das aparências empíricas, escutar em silêncio o silêncio que fala, deixar que a palavra que cada um de nós é se torne no inaudível som que nos deve guiar, tudo isso só pode acontecer na liberdade mais estrita e na responsabilidade perante a própria existência. Poderemos salvar os outros? Se isso se entender como proselitismo, então é impossível salvar seja quem for. Mas se salvar for entendido como a abertura de espaço para que cada um encontro o seu caminho, poderemos não impedir que o outro encontre a sua via. Nos dias de hoje, não faz qualquer sentido falar com os homens modernos como se eles fossem destituídos de autonomia e não passassem de crianças a quem se lhe tem de meter medo para não caírem no maior dos perigos. Não era S. Paulo que dizia que onde abunda o pecado, abunda a graça?

terça-feira, 6 de maio de 2008

Do remorso e do arrependimento

Muitos dizem que não se arrependem de nada do que fizeram. Mas como poderei ser assim e proclamar ao mundo um orgulhoso não arrependimento? Há muitas coisas que não faria efectivamente e ao pensar nelas sinto uma vergonha íntima de as ter praticado. É a essa vergonha íntima a que se poderá chamar remorsos. O curioso, porém, é que essas coisas nunca como hoje chocaram tanto com a minha consciência. Olho para a minha vida e uma multidão de actos, pensamentos, palavras e omissões acusa-me e deixa-me perplexo perante a imagem que de mim faço. Começo a perceber que essas pequenas e grandes inclinações me levaram a um afastamento do absoluto, afastamento esse que fui justificando com razões, como se a razão existisse para justificar o mal que praticamos ou para legitimar a boa consciência. Mas saberei arrepender-me efectivamente? E o que significará esse arrependimento?

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Margem segura

Um dia perdido em divagações e impotência. Em nada do que faço adiantei um milímetro que fosse, apenas as horas passaram e eu passei com elas, como se o meu destino fosse apenas passar. Desespero de mim e lanço um grito de angústia na noite que cai. Quem me escutará? Sinto no corpo uma lassidão tão grande e no espírito uma fria indiferença por tudo o que me compete fazer. A vontade frágil soçobra num mar de indolência e eu sinto-me a afundar e deixo-me ir como se dar aos braços e rumar para a margem segura fosse a mais difícil das tarefas que cabe ao homem no mundo.

domingo, 4 de maio de 2008

Sacro ofício

As obrigações sociais desgastam-nos, roubam-nos ao silêncio, ao recolhimento e dispersam o espírito por aquilo que o mundo impõe. Mas mesmo aí se revela qualquer coisa que não é o puro acontecer desprovido de sentido, mas um indicador do que se deve fazer. Uma obrigação é então uma forma de purificação do espírito e o seu cumprimento uma forma de sacrifício. Este não deve ser entendido como qualquer coisa negativa e dolorosa, mas como um ofício sagrado, um sacro ofício. E que sacro ofício é esse? É o da solicitude para com os outros e a negação dos desejos do nosso eu empírico. A obrigação mostra os limites que são os nossos e é um lugar de aprendizagem do caminho que nos cabe trilhar.

sábado, 3 de maio de 2008

O mistério da encarnação

A descida de Deus, do absoluto, na relatividade da carne e do tempo. Como poderia o olhar humano relativo e preso ao relativo perscrutar o fundo abissal do absoluto? Como poderia o corpo humano pressentir o eterno se tudo nele é temporal e passageiro? Mas a vinda do Cristo não é apenas a revelação do absoluto, do eterno e do divino ao homem. Ela é ainda uma outra coisa incompreensível e escandalosa tanto para a minha razão como para a minha sensibilidade: o tempo ainda participa da eternidade e a carne, aquela de que digo: isto é o meu corpo, é na sua corrupção tocada pela incorruptibilidade. Cristo é a proclamação de que há mais no tempo e na carne do que o mero passar e a funesta aniquilação: neles também habita o eterno, o absoluto e o divino.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Escrevo pelo silêncio

Estou seco. Cheguei a casa vindo do contacto com as gentes, e esta estadia fora do lugar onde o silêncio me pode acolher deixa-me tão gasto que a energia que resta apenas serve para me manter, distraído e em repouso, à tona da vida. O espírito fecha-se em si e o corpo pede-me o abandono que só a preguiça parece poder dar. Agarro-me a estas palavras para resistir. Escrevo-as, na debilidade que me atinge, para ficar um pouco mais forte e mais apto para me entregar ao silêncio e à escuta daquilo que pelo silêncio poderá vir. Escrevo na tarde para ouvir um rumor longínquo, escrevo como se orasse, escrevo para lutar contra a devassidão do cansaço e o brilho negro da morte. Escrevo para recuperar o silêncio que o mundo rouba, como se o mundo não pudesse ser outra coisa senão uma infinita cacofonia, uma torre de babel onde até os mais inanimados dos objectos tivessem uma língua e julgassem por bem fazê-la ouvir a quem passa. Escrevo para recuperar o silêncio das palavras, escrevo pelo silêncio da Tua palavra.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

O florescer das buganvílias

Por vezes olho longamente as buganvílias floridas e, no esplendor que se ergue, descubro como são tão simples e sem mistério. Ali estão engavinhadas ao que as suporta e tudo se prepara, ano após ano, para o momento onde a beleza velada se desoculta perante o meu olhar estupefacto. Vazia é a vida, porém, se a cada ano que passa nada tem para mostrar e apenas deseja mais um ano para, no próximo, o desejo se perpetuar sem motivo, ou causa, ou mérito. Será apenas o meu destino olhar as buganvílias florescer e ser testemunha de uma vida plena e realizada onde todo o mistério se resume em florir à luz do espanto que me trespassa?